Sétima Legião: Morreu Ricardo Camacho, um salva-vidas com duas paixões
Produtor, compositor e teclista da banda de Sete mares estava internado na Bélgica. Ricardo Camacho tinha, a par do percurso musical, uma carreira na virologia clínica. Morreu aos 64 anos.
Num dia como o de hoje não há como não recuperar as palavras de Ricardo Camacho sobre Sete mares, canção que se tornaria a imagem de marca de uma das bandas portuguesas mais importantes dos anos 80 e 90. “É a minha música preferida da Sétima Legião”, disse ao PÚBLICO em Novembro de 2000. “Quando toco aqueles três acordes de abertura e oiço o ‘Tem mil anos uma história’ passa-se qualquer coisa cá dentro, é um daqueles momentos em que uma pessoa sente que vale a pena ser músico. É difícil expressá-lo em palavras, mas se quisesse ser piroso e pedisse para me cantarem uma canção sobre a campa, seria qualquer coisa deste género.”
Ricardo Camacho, médico e músico português, produtor, teclista e compositor da Sétima Legião, banda activa entre 1982 e 2000 a que se devem sucessos do pop rock português como Por quem não esqueci, morreu na madrugada desta quarta-feira. Tinha 64 anos, sofria de cancro no pulmão e estava internado na Bélgica, confirmou ao PÚBLICO o também músico Rodrigo Leão, membro fundador desta formação que incluía ainda Pedro Oliveira (voz e guitarra), Nuno Cruz (bateria, percussão), Gabriel Gomes (acordeão), Paulo Marinho (gaita de foles, flautas), Paulo Abelho (percussão, samplers) e Francisco Menezes (letras, coros).
Nascido na ilha da Madeira em 1954, filho de Jaime Ornelas Camacho, o primeiro presidente do Governo Regional da Madeira, Ricardo Jorge Gonçalves Ornelas Camacho começou a estudar música ainda criança e formou a sua primeira banda quando tinha apenas 14 anos e a guitarra eléctrica era o seu instrumento de eleição. Três anos mais tarde, em 1971, mudou-se para o continente para estudar Medicina na Universidade de Lisboa, curso que chegou a pensar em abandonar mas que o levaria a uma profissão que viria a exercer com paixão, admitiu em várias entrevistas.
Envolvido desde cedo no meio musical, quer em editoras (trabalhou na Valentim de Carvalho e criou a editora Fundação Atlântica, com o músico Pedro Ayres Magalhães, Miguel Esteves Cardoso, jornalista e hoje cronista do PÚBLICO e o empresário Francisco Sande e Castro), quer em programas da Rádio Comercial como Rock em Stock e Mão na Música, Camacho produziu discos de outros artistas e formações, como António Variações, Xutos & Pontapés, GNR ou UHF, mas foi com a Sétima Legião que manteve uma ligação mais sólida e duradoura. Uma ligação que começou com A Um Deus Desconhecido (1984), o primeiro álbum da discografia do grupo que ajudou a fundar, em que colaborou como produtor e teclista, e que se prolongou até ao fim, a partir do segundo título já como membro activo da banda, com a colectânea A História da Sétima Legião (2000). Assinou, sozinho ou a meias, a composição de temas como Monção ou A Volta ao Mundo.
Glória, o primeiro single da história da Sétima Legião, tema com letra de Miguel Esteves Cardoso que começou por ser editado pela Fundação Atlântica (1983), inaugurou a primeira de duas décadas muitos intensas para a banda que lançaria, ainda nos anos 80, Mar D’Outubro (1987) e De Um Tempo Ausente (1989). O Fogo (1992), Auto de Fé (1994) e Sexto Sentido (1999), último álbum de originais que inclui samples de cantos e ritmos de trabalho recolhidos por Michel Giacometti e Ernesto Veiga de Oliveira, foram os títulos que se seguiram, antes da já referida colectânea final (A História da Sétima Legião, 2000).
Em 2012 a banda, que desde o último álbum de originais (1999) nunca deixara de actuar episodicamente em concertos semiprivados, regressou para uma digressão com dez datas que passou pela Casa da Música, no Porto, e pelo Coliseu dos Recreios, em Lisboa, e que coincidiu com a reedição de todos os álbuns.
"O Ricardo foi das primeiras pessoas a ensinar-me muitas coisas. Há 36 anos, quando a Sétima Legião começou, ele começou por ser nosso produtor, mas rapidamente entrou para o grupo. Vivemos ali dez anos muito intensos com concertos e gravações. Ficou um amigo fantástico, de sempre", explica Rodrigo Leão ao PÚBLICO. "Infelizmente, há um ano e meio apareceu esta doença, um cancro no pulmão. Foram momentos muito difíceis. Fomos visitá-lo há um mês. Passámos um dia com ele."
Sem nunca deixar de estar ligado de alguma forma à música, em boa parte da sua vida Ricardo Camacho colocou a Medicina em primeiro plano, passando por vários hospitais e universidades. Trabalhou na unidade pediátrica de transplantes de medula do Instituto Português de Oncologia e, mais tarde, dedicou-se à investigação da sida no Egas Moniz, em Lisboa, hospital onde dirigiu o laboratório de virologia e que viria a deixar em 2013.
"Era um músico fantástico, apesar de se ter dedicado mais à medicina", continua Rodrigo Leão. "Era ligeiramente mais velho do que nós, já era médico quando a Sétima Legião começou. Durante esses dez anos, fazia bancos durante a noite e depois íamos para os concertos."
Investigador do Centro de Malária e outras Doenças Tropicais, Camacho foi também professor na Escola Superior de Ciências da Saúde e na Faculdade de Ciências Médicas, ambas em Lisboa, e na Universidade Católica no Porto. Mais recentemente trabalhou como investigador convidado no Rega Institute for Medical Research em Lovaina, na Bélgica.
Miguel Esteves Cardoso, que entretanto dedicou uma crónica ao amigo, conta ao PÚBLICO: "O Ricardo era uma pessoa muito directa, dizia as coisas como eram. Era um grande herói. Um herói da oncologia e da música, mas acima de tudo um salva-vidas. Sempre teve um fascínio por isso, tanto em oncologia como em pediatria. Depois foi para a investigação da sida numa altura em que toda a gente tinha medo da sida e do contacto com os doentes e ninguém tinha consideração por eles. Era muito sensato, muito trabalhador. Faz muita impressão quando morre um salva-vidas."
A cantora Anamar, com quem Camacho trabalhou enquanto compositor, músico e produtor – é dele a música de Baile Final, single editado pela Fundação Atlântica – foi apanhada de surpresa pela notícia quando contactada pelo PÚBLICO e por isso fala ainda no presente: "O Ricardo é um homem incrível, com uma paixão curiosa. Tem uma grande paixão pela música e uma grande paixão pela medicina, por saber mais, por poder ajudar os outros a estarem bons. É muito humanista."
Anamar também ressalva o gosto do músico pela pesquisa médica. "Ele trabalhou em investigação ligado às doenças e à sida. Era tão dedicado numa coisa como noutra", garante, mesmo quando os dois mundos colidiam: "Na altura, esses interesses até criaram alguns entraves nos ensaios. Muitas vezes não podia [ensaiar] porque estava agarrado aos livros. Mas quando podia, aquilo que saía de dentro, as composições, eram muito inspiradas. Tocavam-me muitíssimo. A melodia e a evolução harmónica eram muito inspiradoras, sempre a puxar para cima, para o melhor. Era lírica, quase, muito pungente. Queria elevar o espírito das pessoas, tinha um lado muito romântico, um pouco místico. [As suas composições] pareciam bandas sonoras de filmes épicos."
Tanto Anamar como Esteves Cardoso sublinham o lado reservado do músico e médico, o que explicará por que razão há tão pouca informação disponível sobre o seu percurso. "O Ricardo não se promovia", comenta o jornalista. "Foi a maior alegria da vida dele ter sido convidado para fazer parte da Sétima Legião, que nós adorávamos. Ele que tinha sido sempre um músico solitário, um compositor, passaria a fazer concertos com a sua banda preferida..."
Os dois conheceram-se no início dos anos 1980, na Rádio Comercial, e partilhavam gostos musicais. "Quando um disco chegava ao Rock em Stock, era a única cópia que havia em Portugal. Ia toda a gente lá para a cabine para ouvir o disco e gravava-se de lá. Discutia-se muita música. Discutia-se tudo. Foi nesse meio que nos encontrámos. Ficámos amigos quando escrevemos músicas para a Manuela Moura Guedes", conta, em referência a Foram Cardos Foram Prosas e Flor Sonhada.
"Ele era um compositor sublime. Compunha num sintetizador Roland, coisas para lá dos limites, muito bonitas, quase espirituais, profundamente líricas e tristes, muito melancólicas e comoventes. Nós queríamos ficar comovidos e a morte do Ian Curtis [vocalista dos Joy Division] só reforçou isso. Essa tristeza existencial estava na música do Ricardo, mas ele não tinha letras e pediu-me", continua o cronista.
Quando se encontraram com os Sétima Legião, recorda, a banda não cantava em português. “Tivemos de os convencer, eles que eram mais novos do que nós e nos esnobavam à grande. Quando eu, o Ricardo e o Pedro [Ayres Magalhães] vamos ter com o Rodrigo Leão e o Pedro Oliveira ao último andar de um prédio da Avenida de Roma, no terraço, estava tudo de gabardina e era Agosto. Eles eram uber-cool. O Rodrigo estava muito inflexível e envergonhado de estar a falar com pessoas mais velhas, que não eram cool como eles. Nós até éramos cool, mas não tão cool. Perguntaram se queríamos ir tomar café lá à casa, onde o Rodrigo morava com a mãe. Perderam logo o cool todo."
David Ferreira, que foi director da EMI-Valentim de Carvalho e hoje apresentador de David Ferreira a contar, programa da Antena 1 que terá uma emissão dedicada a Camacho, lembra ao PÚBLICO o músico: "Era um tipo muito aplicado, muito curioso. Boa pessoa, entusiasmada. Muito informado, um tipo que ia aos sítios. Agora a pensar um bocadinho, a ideia que tenho é que o trabalho dele de investigador é algo que foi sempre na vida. Primeiro na música estrangeira, depois na portuguesa."
Camacho entrou na Valentim de Carvalho ainda antes de Fundação Atlântica pela mão de Francisco Vasconcelos, que foi presidente da editora. Trabalhava em part-time enquanto ainda estudava, na viragem da década de 1970 para 80. "Era um tipo que primeiro me interessou pelos conhecimentos que tinha de música. À margem disso, era uma pessoa delicadíssima, culta, educada, com muito gosto e empenho", continua, assegurando que não se lembra de uma única discussão com ele.
Era também, ressalva, “a última pessoa capaz de se gabar ou de se promover" e "uma espécie de caixinha de surpresas". Surpreendeu-o ao longo dos anos, primeiro com o interesse na produção portuguesa, depois com a faceta de músico e mais tarde ainda quando se dedicou às ciências médicas.
A experiência nas editoras notava-se no lado de homem realista e prático que Miguel Esteves Cardoso recorda. "Se tivéssemos feito o que o Ricardo dizia, a Fundação Atlântica não teria acabado", reconhece Miguel Esteves Cardoso, lembrando que foi com Ayres Magalhães para Inglaterra para os Strawberry Studios, onde tinham gravado os Joy Division, com a ideia de competir na música e descobrir talentos desconhecidos, que acabaram por continuar desconhecidos. “Descobrimos e enterrámos a fortuna toda. Quem é que vai para Inglaterra, onde há tanta música boa e editoras boas, competir? O Ricardo era mais cauteloso”, diz. “Passava por estraga-prazeres, mas o que acontecia é que nós éramos os dois megalómanos e ele realista. O Ricardo não nos atirava nunca à cara ter tido razão. Era um senhor, um aristocrata madeirense."
O médico
Céu Sousa Lobo, médica do serviço de Medicina Transfusional do Egas Moniz, diz que conheceu Ricardo Camacho há quatro décadas, quando foram colegas de faculdade. Descreve o médico, um dos seus "melhores amigos", como "um homem ao mesmo tempo meigo e bruto", que tinha uma inquietude de espírito e uma inquietude científica que é digna de nota. E fala da importância que teve na medicina e do facto de ser internacionalmente reconhecido. Para o ilustrar menciona o carácter pioneiro dos testes na área da biologia molecular do VIH que implementou no Egas Moniz em meados dos anos 1990. Camacho, diz, estava sempre "muito actualizado" e acabou por conseguir fazer no laboratório do hospital o que se fazia no estrangeiro.
No final dessa década de 90, o médico virou-se ainda mais para a investigação. "A partir de uma determinada altura, isto já na época dos testes de resistência ao vírus do VIH, ele acabou por verificar que havia um genótipo especial que era mais frequente em Portugal do que nos outros países, e a investigação acabou por se centrar também aí", referindo várias publicações de Ricardo Camacho sobre o genótipo G.
O facto de ter duas profissões teve impacto na banda. “Mantivemo-nos orgulhosamente não profissionais”, dizia Ricardo Camacho ao Diário de Notícias em 2000, quando saiu a antologia da banda, com 17 canções, garantindo que isso não significava que optassem pelo facilitismo nas gravações ou em palco: “A Sétima é, sobretudo, um grupo rigoroso. Rigoroso na concepção das canções, nas gravações, nas misturas, em cima do palco, mesmo quando o Abelho dele cai abaixo. Nunca confundimos isso com profissionalismo. Profissionalismo era termos de viver disto. E é uma grande liberdade não ter que assim ser.”
Na mesma entrevista o produtor, intérprete e compositor explicava ainda como chegava a banda à sua linguagem tão característica: “Pouca gente conhece a estrutura original das nossas canções e ainda bem porque aquilo é uma amálgama de muitas e muitas coisas. Nós chegamos a acordo por subtracção.” Retirados “excessos” e “barroquismos” ficava uma espécie de tronco comum aceite pelos elementos do grupo, todos eles com culturas musicais muito diferentes, que depois dava origem a canções bastante depuradas em termos de elementos sonoros.
Quando o PÚBLICO lhe perguntou em 2000 o que tinha ficado da viagem da Sétima Legião, Ricardo Camacho respondeu com a inquietude de espírito e um certo tom místico: “Uma luz qualquer que ainda não sabemos explicar. Uma promessa que não promete nada.”
Não há ainda quaisquer informações sobre o funeral do músico, que deverá ser sepultado na Bélgica.