Recordações vigiadas

Cebola Crua com Sal e Broa de Miguel Sousa Tavares é um livro lasso e apressado.

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Um livro que se torna quase impessoal ENRIC VIVES-RUBIO

Disse Maurice Blanchot que a múltipla liberdade formal e temática da escrita diarística encontra no respeito forçado pelo calendário a sua única limitação. Creio que as outras modalidades da literatura autobiográfica ou memorialística não têm sequer tal constrangimento. Miguel Sousa Tavares aproveita bem essa liberdade no seu livro mais recente (que, embora não reclamando formalmente a sua pertença ao género, se integra no vasto campo da literatura mais ou menos confessional), Cebola Crua com Sal e Broa, um título ostensivamente rústico e humilde, qualidades logo contraditadas pela latente grandiloquência do subtítulo: Da infância para o mundo. Quando dizemos que aproveita bem, queremos dizer que toma frequentemente essa liberdade, ao sabor de associações temáticas, ou outras, que fazem com que a narrativa, sustida por uma linha cronológica de fundo, divirja momentaneamente para tempos e lugares diferentes e distantes.

O processo terá a virtude de espevitar a leitura, mas tem o senão de quase sempre nos remeter para um tópico ou para uma opinião que nos lembramos de já ter lido ou ouvido, ou numa entrevista, ou numa crónica, ou num comentário anteriores do autor. É assim que, por exemplo, a propósito de uma viagem de comboio para o Porto feita na infância, e a propósito do “mítico Foguete” desse tempo (um rápido que ligava as duas principais cidades do país demorando apenas mais vinte minutos do que demora hoje – “após sessenta anos e milhares de milhões de euros de ‘modernizações’, projectos e estudos” – o Alfa Pendular), volta a criticar o “total desinvestimento no transporte ferroviário do país” nos governos de Cavaco Silva. E é assim que, para darmos apenas outro exemplo, recordando os dois anos passados no Ministério da Educação a assessorar Sottomayor Cardia na década de 1970, e uma brevíssima carreira de funcionário público “nomeado a título definitivo”, comenta: “Trinta anos e duas falências públicas depois, constato que a base da sobrevivência do actual (2018) governo PS, de António Costa, é a disponibilidade, exigida pelos seus parceiros, para aceitar integrar na Função Pública, na folha de pagamentos vitalícios do Estado, uma quantidade de gente que inclui todos aqueles que, por natureza, foram contratados provisoriamente: estagiários, tarefeiros, contratados a prazo, bolseiros, etc.” Ou seja: o cronista e comentador nunca perde de vista o recolector de memórias, nem lhe permite tomar as rédeas da narração.

Tratando-se o autor de alguém com tão intensa e persistente presença no espaço público e mediático português há mais de três décadas, enquanto jornalista e comentador político, o que é que, legitimamente, se poderia esperar de um seu livro de memórias que fica, temporalmente, no limiar que antecede uma bem-sucedida carreira de romancista de best-sellers (embora a esta se aluda aqui e ali, evidentemente), um livro que, sobretudo, raramente se deixando contaminar por reminiscências ou reflexões íntimas, se torna quase impessoal? Esta impessoalidade (chamemos-lhe assim) é frequentemente sublinhada pela vulgaridade lassa e apressada da linguagem. Alguns exemplos: a propósito da sua estreia como “enviado especial” a Madrid por alturas da transição espanhola para a democracia, alude ao “fantástico jogo de cintura” dos jornalistas americanos “frente ao écran” (p. 293); falando dos anos passados num colégio privado lisboeta, recorda uma professora cujo “problema” era “a falta de homem” (p. 43); contando uma viagem pela Amazónia lembra que um dos membros da equipa da RTP insistia em “falar um português de preto moçambicano com os brasileiros” (257). As embirrações politicamente incorrectas de Miguel Sousa Tavares não são novas, tal como não são desconhecidos muitos episódios e histórias aqui (re)contados e certamente alcançáveis noutras fontes. O que resta? A este propósito, não deixa de ser curioso que o autor, nada dizendo, por exemplo, sobre a família de sua mãe, a poeta Sophia de Mello Breyner Andresen, gaste, em contrapartida, meia-dúzia de linhas a zurzir o “ambiente pequeno-burguês” da casa dos avós paternos.

Miguel Sousa Tavares dedica o capítulo sétimo (um dos mais circunstanciados, aliás) à sua participação, no imediato pós-25 de Abril de 1974, na Comissão de Extinção da PIDE, “por indicação do PS.” (“Agradecido com o convite, até me filiei no PS – de onde viria a desfiliar-me um ano depois […].”) E diz adiante: “Pela minha parte, vi, sem querer e apenas porque os documentos estavam nos dossiers, coisas que nunca contei nem contarei a ninguém. Serviu-me para confirmar que não tenho qualquer instinto de arquitecto Saraiva [trata-se, obviamente, do notório antigo director dos semanários Expresso e Sol] para devassar postumamente a privacidade de pessoas amigas, nem qualquer vocação para coscuvilheiro” (pp.147-8). O que terá levado, então, o autor, em plena rememoração de uma ida a um ignoto festival literário em Tocantins (Brasil), a dedicar quase uma página inteira à “vergonha alheia” que sentiu ao assistir, em Lisboa, a uma conferência de Vasco Pulido Valente, durante a qual o conferencista “insistiu em falar no seu suposto inglês de Oxford, que se revelou ser uma patética algaraviada gramatical e de pronúncia, digna de um lojista paquistanês” (p. 267)? E aquela noite em claro passada em casa de Vasco Lourinho (sim, trata-se ainda da célebre ida a Madrid como “enviado especial”), durante a qual foi assediado sexualmente (leram bem, leitoras e leitores!) por uma espanhola que não cumpria “os padrões mínimos da ¡Hola!”, memorável noite que não chegou ao fim sem que o autor visse o antigo correspondente da RTP sair “de revólver em punho” do seu (dele) quarto, “nuzinho como Deus o trouxe ao mundo”? Memorável? Afirma Blanchot que a escrita diarística convida-nos a sermos “superficiais para não trairmos a sinceridade, grande virtude que requer também coragem”. Talvez a escrita memorialística nos faça idêntico convite, e a mesma exigência.

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