Litoral versus interior – divergência sem fim à vista

Porque as pessoas vão para onde há “economia”, a emigração para os centros urbanos do litoral tem sido a tendência histórica.

Em Portugal, a distribuição geográfica da actividade económica, social e cultural entre o litoral e o interior é demasiado assimétrica e, por consequência, o mesmo acontece com a distribuição da população. O litoral é jovem, urbano, povoado, dinâmico e activo. O interior é envelhecido, rural, desertificado, estagnado, deprimido e associado a uma milenar vida de miséria. Por exemplo, enquanto a estrutura urbana do interior é das mais débeis da União Europeia, a do litoral revela uma competitividade e um grau de internacionalização crescentes.

Porque as pessoas vão para onde há “economia”, a emigração para os centros urbanos do litoral tem sido a tendência histórica. A escassez de população nas zonas de fronteira com Espanha começou com a conflitualidade histórica entre os reinos de Portugal e de Castela-Leão: sem população, infra-estruturas e oportunidades de emprego gerou-se uma barreira entre reinos. Posteriormente, a orientação marítima imposta pelos descobrimentos acentuou a divergência litoral/interior. Desde os anos 30 do século passado, mas sobretudo no pós-2.ª Guerra Mundial, com a globalização e o aumento da concorrência, aumentou a pressão competitiva sobre as empresas pelo que, sem ajuda pública, passaram a concentrar-se no litoral. A tendência agravou-se com a adesão à EFTA nos anos 60 e a adesão à CEE/UE nos anos 80 do século passado. O reforço da divergência entre regiões foi sempre potenciado pelo maior investimento público em infra-estruturas, serviços e criação de emprego no litoral, “onde há votantes”, promovido pelos sucessivos governos.

Em suma, as migrações que têm assolado o interior à procura de melhores condições de empregabilidade no litoral (e no estrangeiro) conduziram ao progressivo esvaziamento demográfico e empresarial. Apesar de todos os constrangimentos que historicamente se têm imposto ao interior, representa cerca de 70% do território nacional e 30% da população.

Como a generalidade dos governos anteriores, também o actual manifesta “desejo” de contribuir para a diminuição da divergência entre ambas as regiões. Como de outras vezes, creio que todos estamos de acordo que o propósito é meritório. Mas, tal como de outras vezes, temo que, também agora, se fale apenas do fenómeno e “não bata a bota com a perdigota”. Para já não se entende o contínuo encerramento de serviços no interior do país (veja-se o encerramento de diversos balcões da CGD ou de estações dos CTT, com o argumento de insuficiente número de utentes), pelo que as populações esquecidas do interior terão de satisfazer as suas necessidades em centros urbanos do litoral.

É verdade que o avanço nas tecnologias de informação – televisão, internet e telemóveis – pode atenuar o isolamento das pessoas esquecidas do interior, mas não favorece a fixação no interior e, portanto, não promove a inclusão e a coesão social e territorial. Também as melhorias nas vias de comunicação – estradas e auto-estradas – podem atenuar o isolamento, mas não promoveram o desenvolvimento e a coesão, acabando sobretudo por permitir maior mobilidade entre regiões; em particular, muita gente, como eu, que saiu para o litoral pode agora, mais facilmente, passar fins-de -semana ou férias na terra natal do interior.

O que se espera dos governos é que sejam capazes de corrigir as falhas de mercado pelo que devem intervir no sentido de promover/restruturar a actividade económica no interior. Se assim não for, como não tem sido, entra-se, como tem acontecido, num ciclo vicioso. A “economia” foi deixando de ser suficiente para melhorar as condições de vida, passando a faltar empregos e equipamentos básicos. À medida que a população do interior foi diminuindo, menos “economia” foi sendo precisa e muitas empresas foram fechando: o círculo vicioso da pobreza e da desertificação foi-se auto-alimentando “a olhos vistos”.

Portanto, a dicotomia litoral/interior existe porque permanece uma desigualdade de oportunidades, desde logo pela inferior qualidade dos serviços fornecidos pelo Estado nas áreas da cultura, educação, justiça e saúde. Permite-se que a elite dirigente e técnica de um sem número de organismos com funções de regulação, controlo e fiscalização, cuja actividade produtiva se concentra no interior, desempenhe as suas funções no litoral. Refira-se a título de exemplo o Instituto da Vinha e do Vinho, o Instituto dos Vinhos do Porto e Douro, a Administração e todos os serviços da EDP, Iberdrola e outras. Consideram as barragens como “investimentos de desenvolvimento local”, mas apenas criam o posto de trabalho do vigilante durante a sua fase de exploração, pois o “real” emprego concentra-se no litoral.

Aliás, o que o Estado tem feito com estes empreendimentos é nacionalizar, ao abrigo do interesse nacional, os meios de produção de milhares de anónimos que tinham aí a sua independência económica e simultaneamente garantida a liberdade, para depois concessionar a uma entidade privada a sua exploração, cujos detentores de capital jamais contribuíram para a melhoria da massa crítica social destes lugares.

Resumindo, o investimento que o Estado tem promovido no interior, em vez de criar efeito de replicação/imitação, concentra ainda mais o emprego e a riqueza no litoral. Há apenas investimentos pontuais, intempestivos, sem qualquer possibilidade de adensamento do tecido económico e social. Investe no turismo, mas corta serviços de saúde. Investe na educação, mas cria organismos com capacidade de absorção de recursos humanos de elevada formação no litoral. Despeja milhões no combate aos incêndios rurais, mas os beneficiários estão no litoral. Não existe, de facto, uma política integrada de aumento de competitividade do território do interior, para que os recursos dos residentes lhes permita aceder aos bens e serviços que a sociedade fornece. Resta a migração que tem sido e continua a ser a sina de Transmontanos, Beirões, Alentejanos e de parte de Minhotos.

Desejando agora promover a coesão e o desenvolvimento social e territorial, se não houvesse hipocrisia, o governo concederia de imediato incentivos generosos, compensando os custos da interioridade. O montante adequado seria certamente menor que o despendido com a recente ajuda à banca! Seguindo a máxima “não dê o peixe, ensine a pescar”, a forma de distribuição desses incentivos requer a formulação de estratégias que tornem o interior competitivo, o que significa que é necessário saber identificar as vantagens competitivas que devem ser preservadas. O interior deve aproveitar capacidades instaladas e características que o diferenciam positivamente do litoral, potenciando essas características e traçando uma estratégia que fortaleça o aproveitamento económico das oportunidades. O interior tem recursos mais ou menos abundantes que podem ser aproveitados e valorizados, desde o património cultural (monumental e imaterial) aos espaços naturais, desde produtos agrícolas singulares aos recursos do subsolo. Em algumas indústrias tem até tradição. É assim que se deve pensar o desenvolvimento.

Mas o interior deve também beneficiar do princípio da solidariedade interterritorial, como Portugal como um todo (e o litoral, em particular) tem beneficiado dos países mais ricos da UE. Isso faz-se, por exemplo, invertendo a lógica de desqualificação dos serviços e infra-estruturas existentes. Faz-se também por via do reforço de serviços e da atractividade de alguns centros urbanos do interior, estrategicamente posicionados. Faz-se, ainda, olhando para os recursos e capacidades endógenas e pensando o respectivo desenvolvimento a partir do aproveitamento desses recursos e dessas competências.

Como Miguel Torga de forma sábia referiu, a Ibéria será forte enquanto mantiver uma meseta forte, e Portugal será forte se tiver um interior forte!

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