Ilya foi apanhado pela loucura do Mundial a caminho da Sibéria

Os russos acordaram definitivamente para o Campeonato do Mundo. Na capital, um estucador obrigado a procurar trabalho a seis fusos horários de ditância, viu-se arrastado pela onda de euforia.

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LUSA/FELIPE TRUEBA

Ilya Diachuck não é propriamente um amante de futebol. Prefere o hóquei no gelo, como tantos milhões de compatriotas. Mas na sua longa jornada entre a cidade rural de Armavir, perto da fronteira com a Geórgia, e a remota localidade de Olekminsk, no coração da Sibéria Oriental, teve de fazer escala em Moscovo. Exactamente no dia em que a cidade enlouquecera, com a Rússia a eliminar Espanha. Foi arrastado até à Praça Vermelha.

Os russos acordaram definitivamente para o Mundial que se organiza no seu país. Nos dias que antecederam o torneio, a indiferença era quase total. Após o robusto triunfo sobre a Arábia Saudita surgiram as primeiras (poucas) bandeiras nas janelas e em alguns carros. Muitas foram discretamente retiradas logo a seguir à pesada derrota com o Uruguai. A passagem aos quartos-de-final à custa da poderosa Espanha, no domingo, levantou o país numa onda nacionalista desbragada.

Em todas as grandes cidades saíram à rua multidões. Em Moscovo, a festa foi apoteótica. Calhou estar ali o recatado Ilya Diachuck, um estucador de 43 anos, nascido na região de Krasnodar, que ao princípio nem conseguia perceber bem do que se tratava. E tendo em conta o historial de revoluções no país até ficou de pé atrás. Mas lá percebeu e seguiu a onda humana. Só parou na Praça Vermelha com a cara entretanto pintada com as cores da bandeira da federação russa. Num só dia, conheceu mais nacionalidades, que se juntaram à festa da casa, do que em toda a sua vida.

Ontem, era um homem feliz no aeroporto de Domodedovo, onde aguardava o avião que o levará de regresso ao fim do mundo. Pelo menos é o que parece pela sua discrição. O seu rosto juvenil não coincide com a data de nascimento no passaporte.

Franzino, com cabelo curto, tem olhos de um azul profundo, joviais, quase infantis, que se cerram muito quando se ri. E Ilya ri muito, ao contrário de grande parte dos russos. Esteve um mês de férias com a família em Armavir, onde as temperaturas ultrapassam os 30 graus nesta altura do ano. Ainda traz os chinelos e os calções de banho com listas azuis e castanhas, pinceladas com palmeiras. Quer agarrar-se ao Verão e ao bom tempo o mais que puder.

São 15h em Moscovo e falta ainda um pouco para o avião partir, mas naquela que é a sua outra casa, desde há um ano, já é noite. Ou melhor, nesta altura do ano nunca é noite, apesar de serem seis horas mais tarde do que na capital russa. Situada na margem direita do grande rio Lena, o décimo mais longo do mundo, Olekminsk está nos antípodas de Armavir.

O Verão é muitas vezes mais inóspito do que qualquer Inverno rigoroso em Krasnodar, situada a poucos quilómetros do aprazível mar Negro. E os invernos? Quando fala dos invernos, o sorriso de Ilya é mais forçado. Ultrapassou o primeiro há poucos meses e não queria acreditar quando viu os termómetros baterem nos 54 graus negativos.

Mostra a fotografia de um deles no telemóvel com o mercúrio bem em baixo. Tenta explicar com o pouco inglês que aprendeu — e já na Sibéria, com engenheiros estrangeiros — e com o apoio de um tradutor. Fala pausadamente. Quer ser bem entendido e fica frustrado quando lhe faltam palavras e tem de usar o russo.

Fim de festa abrupto

Mas como foi Ilya parar às geladas tundras siberianas? Durante alguns anos, o seu trabalho como estucador no Sul da Rússia europeia corria bem. Ou melhor, excepcionalmente. Como muitos outros, foi atraído para a vizinha Sochi, que se tornara um gigante estaleiro de construção na epopeia dos Jogos de Inverno de 2014.

A ambição de realizar o evento nesta zona balnear com um clima temperado — apesar de rodeada pelas majestosas montanhas do Cáucaso, onde nos pontos mais altos é possível esquiar todo o ano — teve custos, neste caso tão extraordinários como a obra: cinco mil milhões de dólares (4,3 mil milhões de euros).

Adler, a cidade da região de Sochi onde está instalado o Parque Olímpico, que inclui o Estádio de Fisht, bem conhecido de Portugal pelas melhores e piores razões neste Mundial, transfigurou-se num processo doloroso de gentrificação. Bairros inteiros foram destruídos e as suas populações removidas e reinstaladas noutras paragens, por vezes distantes. O progresso entrava à força na estância de férias preferida do ditador Josef Estaline.

O pior veio depois. Com o fim dos Jogos, o clima de festa terminou abruptamente. Muitas empresas de construção fecharam as portas e passou a escassear o trabalho para pessoas como Ilya. Com uma filha recém-nascida e um crédito bancário para pagar, não pensou muito quando surgiu o convite para ir trabalhar na construção de um extenso gasoduto na Sibéria oriental. Na verdade, nem sabia bem onde era.

Viajou em Novembro do ano passado para Olekminsk. Demorou uma eternidade a chegar e nada o preparara para o primeiro embate. O intenso frio, a neve e aquilo que mais o atormentou: o vento cortante que varria a tundra incessantemente coberta de branco. O ordenado era extraordinário e pareceu de facto bom de mais para ser verdade. Olhou para a conta bancária e resistiu à tentação de dar meia volta.

O seu contrato estabelecia que trabalharia trimestres seguidos, entre as 7h e as 18h, sem folgas, tendo em seguida direito a um mês de férias. Calharam em Fevereiro e em Junho, tendo conseguido três dias extras no início deste mês para ir a um casamento em Krasnodar. Trabalha no apoio às grandes máquinas que deslocam os pesados e gigantes tubos por onde irá circular o gás das inesgotáveis jazidas siberianas.

“É um trabalho perigoso, com a neve e o vento, os tubos podem cair em cima de nós. A minha mulher, Ekaterina, perguntou-me se eu era maluco quando regressei pela primeira vez a casa e lhe mostrei as fotografias.” E dá uma gargalhada ao mesmo tempo que abana a cabeça para cima e para baixo.

Na verdade, Ilya não vive exactamente em Olekminsk, mas sim a dois quilómetros de distância, na outra margem do majestoso rio Lena. Ali foi montada uma pequena cidade de casas pré-fabricadas para os cerca de 300 trabalhadores deslocados para estas paragens. “São todos russos”, garante.

Em cada um destes cubículos rectangulares, muito próximos uns dos outros, vivem oito homens. Quatro de cada vez, sem coincidirem, já que existe o turno diurno e o nocturno. “Por fora é feita de ferro e por dentro revestida com madeira e outros materiais isolantes para o frio não entrar.”

Cada uma tem duas portas, uma a seguir à outra, um reduzido hall de entrada e uma mesinha a separar os quatro beliches, com uma bateria por baixo e uma pequena televisão em cima. Há ainda uma acanhada casa de banho. Pelas fotos, parece claustrofóbica. “Muitas vezes não há Internet para falarmos para casa”, lamenta antes de fazer uma careta. “Que engenheiro terá pensado nisto?”

O seu avião está prestes a partir para uma viagem de sete horas durante a qual atravessa seis fusos horários. Leva as fotos do Mundial que o apanhou em Moscovo a caminho da Sibéria. “Os meus colegas vão ficar cheios de inveja.”

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