Tengarrinha
José Manuel Tengarrinha partiu. As suas ideias estão vivas como sempre. Algumas estão finalmente a ser postas em prática. Outras se-lo-ão, não o duvidemos, em breve
Revejo as imagens da saída dos presos políticos de Caxias, a 27 de abril de 1974, e lá encontro José Manuel Tengarrinha: prestando declarações com serenidade, com elegância, com inteligência, com aquela atenção prestada ao próximo que lhe era própria. Tendo o cuidado de lembrar que “a libertação de todos os presos políticos” foi o resultado de “uma deliberação unânime dos próprios presos no sentido de saírem todos juntos” (e não separadamente como antes teria sido preferência da Junta de Salvação Nacional). E lembro-me de outra coisa: José Manuel Tengarrinha tinha então 42 anos.
Diz-se muitas vezes — corretamente — que é difícil a nós hoje imaginar o que significava fazer oposição à ditadura e estar preparado para ser preso a qualquer momento. É igualmente difícil imaginar como as gerações da oposição foram forçadas a crescer e tomar responsabilidades depressa. Vê-se nas imagens da libertação um Salgado Zenha de 50 anos e um Jorge Sampaio de 35, advogados de presos políticos que tinham vindo agora libertar à cadeia de Caxias. Vê-se militantes do PCP ou da LUAR com vinte anos de idade, alguns dos quais presos desde os seus dezoito anos. E se houvesse maneira de correr o filme para trás veríamos jovens republicanos, socialistas, comunistas e anarquistas, alguns deles enviados para o Tarrafal ainda antes de serem maiores. Grande parte deles viveram toda a sua vida adulta sob a ditadura; alguns deles terão desesperado de a ver acabar. Quando o 25 de Abril chegou, eram estes ainda jovens homens e mulheres tornados adultos pelas circunstâncias que tiveram de se preparar para tomar um país em mãos, evitar o pior que seria uma nova fratura ou uma guerra civil, e conduzi-lo à democracia.
José Manuel Tengarrinha era um desses. Desde que nasceu em 1932 até àquele dia em que foi libertado de Caxias (tinha sido preso poucos dias antes, mas não fora a primeira vez: já antes fora preso político a merecer um movimento internacional de solidariedade pela sua libertação) só conhecera a ditadura, ou melhor, a oposição à ditadura: do MUD juvenil às listas da Comissão Democrática Eleitoral, que depois se transformaria em Movimento Democrático Português (MDP/CDE).
Mas ao mesmo tempo José Manuel Tengarrinha era diferente. Com os seus camaradas do MDP/CDE percebeu que para haver uma democracia desenvolvida não era só necessário haver partidos, mas teria de haver partidos que fossem democráticos: os estatutos do MDP, com a criação de Movimentos Democráticos em cada distrito do país, são percursores daquilo a que hoje se chama de democracia deliberativa. Percebeu antes de muitos que era a partir do meio da esquerda, contrariando os maus hábitos sectários de centristas e extremistas, que era possível tentar ser catalisador de uma mudança política progressista em Portugal. Percebeu que na nova realidade do que viria a ser a União Europeia, Portugal precisava de ter um partido representado na família parlamentar europeia que viria depois a ser a dos Verdes Europeus: ecologistas, progressistas e lutadores pelos direitos humanos que não estivessem enfeudados a blocos geopolíticos ou a taticismos espúrios.
E mais do que isto, talvez José Manuel Tengarrinha tenha percebido o que estava por detrás destas escolhas estratégicas: uma luta inglória, difícil e permanente que era preciso levar para diante com a mesma elegância e serenidade com que ele falava à saída de Caxias. E por isso, quando as consequências daquelas escolhas estratégicas o puseram perante a incompreensão e ostracismo por parte de antigos camaradas, e perante um certo silenciamento político e mediático, José Manuel Tengarrinha percebeu que a política não era a única forma de dar o seu contributo ao país. Voltou à sua paixão que era a historiografia e o ensino da história; escreveu milhares de páginas sobre a história da imprensa em Portugal, estudou a fundo e publicou incessantemente sobre o século XIX português e o longo arco do progressismo que nele vai do liberalismo ao socialismo. E continuou a ser certamente a mesma pessoa de sorriso afável que eu conheci em 2014, quando me disseram que ele queria apoiar o LIVRE nas eleições europeias a que o partido concorria pela primeira vez com apenas dois meses de existência. Não tínhamos pedido apoio a ninguém, muito menos a José Manuel Tengarrinha. E aqui estava alguém que, podendo descansar sob os louros de um percurso cívico e intelectual único, se decidia a apoiar um partido novo de gente nova. Simplesmente porque, como nos disse, se sentia livre como nunca. Para quem como eu ele tinha sido o político mais admirado desde a infância (a primeira vez que fiz campanha foi pelo MDP/CDE nas Europeias de 1989), conhecê-lo e, depois, ter tido o privilégio de ser candidato nas mesmas listas (em 2015) e seu camarada de partido (a partir desse ano) foi passar a admirá-lo ainda mais. Vê-lo debater amenamente com quem tinha cinco vezes menos idade do que ele foi uma lição.
José Manuel Tengarrinha partiu. As suas ideias estão vivas como sempre. Algumas estão finalmente a ser postas em prática. Outras se-lo-ão, não o duvidemos, em breve. Porque são ideias livres e resistentes, como ele e como a planta de que ele tinha o nome, e que é tão comum no seu Algarve natal.