Um daqueles sítios de notícias que nos mandam mensagens pelo Google decidiu que numa noite de S. João eu haveria de querer saber que não havia álcool ou drogas no sangue de Anthony Bourdain quando se suicidou. Gostava muito do chef-viajante-jornalista não só pelos programas que fazia, e para lá da inveja positiva do seu ofício, mas também pelo que deixava transparecer da sua personalidade, desapegado, algo intransigente, preocupado, verdadeiro. Por isso, por muito que o admirasse e gostasse dos seus programas e dos seus livros (o esgotado Osso na Garganta foi um dos policiais que mais prazer me deu ler), não fiquei necessariamente com vontade de saber mais sobre a sua morte, para ser honesto nem sequer fiquei muito surpreendido com o suicídio — fartou-se do absurdo da vida, pensei, tentou combatê-lo à sua maneira e perdeu.
Não o respeito menos por isso e devolvo-lhe a mesma humanidade que ele tinha quando falava com as pessoas à volta do mundo — os programas dele eram sobre pessoas, a comida era o berloque — e não quero que o tratem como uma estrela e lhe autopsiem a vida, basta o corpo. E do corpo, do corpo de um famoso apresentador que escolheu suicidar-se aos 61 anos, no topo da fama como figura televisiva e aparentemente bem na vida pessoal e profissional, do chef. Não me interessa se tinha vestígios de álcool ou drogas no sangue, nem me interessa se se desentendera com a mulher que amava, nem se o… não me interessa.
Uma semana depois de Bourdain se ter enforcado no hotel de cinco estrelas na Alsácia, tocou a campainha de um décimo andar do Edifício 7 de um bairro de Cornellá, Barcelona. Não sei se lhe posso chamar bairro operário, como até meados do século passado, ou se o posso localizar nos “Mares do Sul”, por não saber quantos fãs de Montalbán ainda há, mas sei que Bourdain poderia ter lá ido, fazer um programa. E quando toca a campainha de casa, uma boa parte de nós pensa em coisas boas como a surpresa de uma visita de amigos ou do nosso amor, de um familiar com o jantar e umas fotos antigas, um vizinho que quer falar dos cigarros que andam a deitar pela janela ou do pão que o velhote do 4.º direito atira às pombas.
No caso de Jordi, era o banco que tocava à campainha do 10.º, casa 2.ª do edifício 7 do bairro Saint Ildefons. Ninguém o conhecia fora da vizinhança, fazia pela vida como podia desde que perdeu o emprego fixo, e já só andava de bicicleta e com ela percorria os Mares do Sul à procura de um qualquer trabalho, de electricista a… ao que fosse. Há 14 meses que não pagava a renda ao (ai que nome orwellianamente negrobranco) Banco Popular, dono do andar, e eles acabaram por vir, para o despejar. E então Jordi deparou-se com o absurdo, o absurdo de um banco apoiado pelo Estado, pelo Estado que não lhe garante um emprego, o vir despejar com o manu militari que existe para o defender a ele como cidadão, o absurdo de não poder pagar a sua existência, da companheira e do cão, o absurdo de no final do semestre a dona do Banco Santander, que comprou o Popular, poder dizer que recuperou xis milhões de créditos, sem dizer que recuperou a casa 2.ª, do 10.º andar do edifício 7 do bairro Saint Ildefons, em Cornellá. E então, na vertigem de tudo, pensando certamente em nada disto, esqueceu as vertigens e atirou-se. Do 10.º andar daquele bloco, amaldiçoado segundo alguns porque “es el tercero que se suicida tirándose de la ventana. Tercero que yo recuerde”.
A reportagem do El Español não conta se tinha álcool no sangue, ou droga. Nenhum jornal português deu a notícia ou, pelo menos, nenhum alerta me chegou ao telemóvel como no caso de Bourdain. Ao ouvir a história de Jordi fiquei (não com um osso como no livro do chef mas) com um enorme nó na garganta.