Revista literária Quatro cinco um atravessou fronteiras

A revista mensal brasileira de livros fez um ano em Maio. No mês de Junho, passou a estar à venda em Portugal. Pode ser comprada nas livrarias por todo o país e também na loja da Tinta-da-China em Lisboa.

,
Fotogaleria
Paulo Werneck e Fernanda Diamant Nino Andrés
,
Fotogaleria
As revistas de Maio e de Junho de 2018 DR
Retrato
Fotogaleria
Paulo Werneck e Fernanda Diamant Nino Andrés
Óculos, Fotografia, Retrato
Fotogaleria
Paulo Werneck e Fernanda Diamant Nino Andrés

Numa época em que o espaço dedicado aos livros nos jornais tem diminuído, dois brasileiros, amigos desde o colégio, Fernanda Diamant e Paulo Werneck, resolveram criar uma revista literária em São Paulo. O primeiro número da Quatro cinco um saiu em Maio de 2017. Um ano depois, a revista está também à venda em Portugal.

Bárbara Bulhosa, da Tinta-da-China, a editora da revista Granta em Língua Portuguesa, que tem agora publicação simultânea em Portugal e no Brasil, apostou na distribuição entre nós desta nova revista mensal brasileira, não só porque "se encaixa" no seu projecto global em relação à língua portuguesa mas também porque considera que “não há actualmente nenhuma publicação em Portugal com as características e a qualidade da Quatro cinco um”, explica a editora ao PÚBLICO.

Quatro cinco um passa a estar à venda nas livrarias portuguesas, nas cadeias da Fnac e Bertrand e ainda na loja da editora Tinta-da-China em Lisboa, duas semanas depois de sair no Brasil. Custa cinco euros. 

Foi em Junho de 2016 que Paulo Werneck, o jornalista e editor que foi o curador da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) de 2014 a 2016, combinou um almoço com Fernanda Diamant para lhe fazer “esse convite de parceria maravilhoso”. Na época, Diamant tinha deixado de trabalhar em editoras para ser mãe e para se dedicar a estudar Filosofia. “Estava desejando voltar. Então foi perfeito. Foram muitas conversas, mas começámos a desenvolver o projecto de verdade a partir de Outubro daquele ano”, conta a editora brasileira ao PÚBLICO por email.

Foto

Decidiram que não queriam criar um projecto com “um perfil empresarial, de lucros”, mas um projecto “cultural, de divulgação de conhecimento e crítica”. Para isso, pareceu-lhes que uma associação sem fins lucrativos seria mais adequada. Por isso criaram a Associação Quatro cinco um. “Com ela podemos ampliar o espectro de projectos, desde outras publicações até palestras, prémios e festivais”, explica Fernanda Diamant.

Mecenato e parcerias

A revista tem um conselho fundador e vive também de apoios e de patrocínios. Quando fizeram “o business plan” perceberam que precisavam de várias fontes de recursos para que o projecto desse certo, “mecenato de pessoas físicas que entendessem a importância da publicação para o país”, “parcerias fortes com players importantes do universo do livro (no caso do papel, com a empresa Pólen, e com a gráfica Ipsis)” e tiveram “o privilégio de receber essa carona na revista Piauí, a revista mensal mais relevante do Brasil”, com a qual a revista Quatro cinco um foi distribuída durante seis meses. O que ajudou a que os leitores e assinantes da Piauí se acostumassem à sua leitura mensal.

Foi dessa maneira que contornaram a falta de publicidade habitual nas revistas e cadernos literários?, perguntámos a Fernanda Diamant. “Esse mesmo business plan incluía vendas avulsas, assinaturas e alguma publicidade. Como o mercado estava em crise, fizemos uma projecção bastante conservadora, mas estamos nos surpreendendo de maneira positiva. As book reviews de língua inglesa têm muita publicidade de editoras, especialmente as académicas. O Brasil não tem essa cultura, esperamos fomentá-la”, respondeu, explicando ainda que a revista funciona com uma pequena redacção, “num coworking muito vibrante no Largo do Arouche, no centro de São Paulo”.

É lá que produzem “o Listão” [uma lista que é uma selecção das novidades editoriais que cada mês lhes chegam à redacção e que destacam nas últimas páginas de cada edição], que editam e paginam a revista (num projecto gráfico de Daniel Trench e Celso Longo, com direcção de arte de Júlia Monteiro), além de tratarem da parte mais operacional. Mas têm colaboradores “espalhados pelo Brasil (e pelo mundo)”.

Não foi fácil chegarem ao Quatro cinco um, “o nome da revista demorou para aparecer”, diz Fernanda Diamant. Lembra que os dois editores fizeram listas e tiveram mil ideias. Mas, finalmente, “Quatro cinco um pareceu encaixar-se perfeitamente no tipo de ‘loucura’ que estávamos planejando”, explica.

“O Brasil em crise, a mídia impressa em crise e nós com essa ideia um tanto utópica. Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, é um clássico da ficção científica publicado em 1953 e transformado em filme por François Truffaut em 1968. É proibido ler nessa sociedade imaginária, e os bombeiros, em vez de apagar incêndios, colocam fogo nos livros (o título é a temperatura em que o papel pega fogo). Apesar de ser uma distopia, a história termina de forma optimista, com a sociedade anti-livros entrando em colapso e o bombeiro Montag convertido ao universo da leitura”, acrescenta.

Apesar de a revista se centrar na recensão de livros em edição brasileira (muitos já têm ou virão a ter edição em Portugal, num mercado editorial cada vez mais global), tem também longos ensaios e crónicas. Em edições passadas, o biógrafo norte-americano Benjamin Moser escreveu sobre Maria Gabriela Llansol, "a irmã portuguesa de Clarice e Emily Dickinson que criou uma obra monumental à sombra da ditadura de Salazar” (Agosto 2017), e o escritor colombiano Héctor Abad Faciolince reflectiu sobre “Cavalinhos de carbono e titânio” – lembrando que “há dois séculos, uma mudança climática deu origem à bicicleta, o mais limpo, barato e prazeroso meio de transporte, celebrado em Julho no Tour de France” (Setembro 2017).

Na edição de Maio 2018, que está já à venda em Portugal, há um dossier sobre “Rebeldia e controle”, com Foucault e Rancière vistos pelo escritor brasileiro Bernardo Carvalho, e uma análise ao livro Desobedecer, do filósofo francês Fréderic Gros, onde este se “vale de La Boétie, Foucault e Hannah Arendt para repensar o lugar da rebeldia e da desobediência na sociedade” feita por Diego Viana.

Outro dos destaques desta edição é “Se eu fosse homem”, um texto de Rebecca Solnit, a escritora que criou o termo mansplaining – “atitude masculina de explicar obviedades para mulheres" –, onde esta “imagina a vida sem os entraves que enfrentou como mulher”.

Na edição de Junho, a escritora brasileira Noemi Jaffe tem um texto intitulado “Sobretudo o mar”, onde escreve sobre “a extensa antologia organizada por Eucanaã Ferraz”, que reúne poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen e que foi publicada no Brasil pela Companhia das Letras. Na mesma revista, a poeta brasileira Alice Sant’Anna escreve sobre Um Jogo Bastante Perigoso, o livro de estreia da portuguesa Adília Lopes, publicado originalmente em 1985 e que é editado pela primeira vez no Brasil.

Está lá também uma crítica ao livro de contos do escritor brasileiro Gustavo Pacheco, cujo Alguns Humanos foi editado em Portugal, pela Tinta da China, antes de o ser no Brasil. E Kalaf Epalanga, autor de Também Os Brancos Sabem Dançar, faz uma crónica sobre Lisboa intitulada “A coisa aqui tá africana”: “ser negro em Portugal não é uma experiência única : existem vontades e ideias dissonantes nessa luta comum para descolonizar a sociedade”, onde o também músico faz uma variação dos famosos versos de Chico Buarque: “Aqui em Lisboa começamos a descolonizar/ Tem muita kizomba, muito kuduro e afro house/ Uns dias chove, noutros dias bate o sol/ Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá africana”.

Além da revista impressa, existe um siterevista451.com.br, onde os editores querem ter também conteúdos diferentes dos da versão em papel: reportagens e entrevistas, excertos de livros e galerias de imagens.

Sugerir correcção
Comentar