As aventuras extraordinárias de Sousa Cintra no reino do "leão"
Passados quase 30 anos, Sousa Cintra volta a ser o homem forte do Sporting. Olhar para anos em que foi presidente dos “leões” é como assistir a um filme com momentos de glória e de desgraça. Com muitas polémicas e momentos de comédia à mistura. Chegaram a chamar-lhe o “presidente do povo”. Saiu com o povo contra ele e empurrado pela “realeza” de Alvalade.
O sorriso feliz que ostentou quase sempre nos seis anos (1989/1995) em que foi presidente do Sporting Clube de Portugal voltou-lhe ao rosto. É notório que o homem nascido na Aldeia da Raposeira, Vila dos Bispo, há 73 anos está radiante por regressar à liderança em Alvalade. Ainda que lhe esteja destinado ocupar o cargo de Presidente da SAD do clube por apenas dois meses, José de Sousa Cintra é um homem feliz no sítio onde já o foi no passado, mas onde também teve muitos dissabores.
Vinte e nove anos depois, o empresário volta a pegar no clube num momento muito difícil. Em 1989, o Sporting vivia uma enorme crise financeira, quando nem havia dinheiro para pagar ordenados ou contas da electricidade. Sousa Cintra nunca o recuperou totalmente, mas tirou-o do fundo do buraco. Investiu nas modalidades e nos jogadores para o futebol. Ganhou a simpatia dos adeptos, mas só amealhou um título quando já não era presidente. Foi ele que preparou a época que deu a Taça de Portugal ao Sporting em 1995, mas seria já Pedro Santana Lopes a erguer o troféu.
Agora, está outra vez à frente de clube que financeiramente é uma incógnita; que tem a equipa de futebol debilitada quando a época de preparação já está em curso; e que tem os adeptos divididos. Um clube onde a gritaria e os conflitos se sobrepõem à serenidade que o futebol profissional exige.
Mas Cintra está habituado a isso, ou não fossem os seus seis anos de presidente do Sporting tempos de permanente polémica. E de casos, muitos casos, alguns mais sérios e outros que ficaram para anedotário futebolístico nacional. O homem que aos quatro anos apanhava caracóis em terras algarvias para vender e se tornou um grande empresário, está de volta, depois de, em 1995, ter sido empurrado para uma saída de cabeça baixa pelo poder financeiro, na chamada “revolução de Alvalade”. O P2 recorda algumas aventuras e desventuras de Sousa Cintra no reino do leão.
A crise da pala
No início de Julho de 1992 caiu uma “bomba” em Alvalade: o Laboratório Nacional de Engenheira Civil (LNEC) tinha feito uma inspecção à cobertura de betão da bancada central do Estádio José Alvalade e concluiu que a estrutura da pala estava deteriorada e não tinha condições de segurança.
Sousa Cintra ficou fora de si. Considerou o relatório “uma palhaçada”, garantia que a pala estava segura e acusou os técnicos do LNEC de serem “benfiquistas”. Poucos dias depois saía o relatório definitivo que acentuava a necessidade de fazer obras de reforço e sugeria o encerramento da bancada.
O então presidente do Sporting aparecia todos os dias nos media, repetindo que se tratava de uma perseguição ao clube. Estava zangado. A temporada pronta a arrancar e queriam fechar-lhe a bancada central, para onde se vendiam os bilhetes mais caros e se sentavam também os dirigentes do Sporting e os seus convidados. Pior ficou quando o Governo mandou encerrar a bancada por questões de segurança, garantido que só a voltaria a abrir quando o Sporting fizesse as obras de reforço propostas pelo LNEC.
Esta decisão governamental não foi dada por nenhum benfiquista, mas sim por um “leão”, Pedro Santana Lopes, secretário de Estado da Cultura do Governo de Cavaco Silva. Santana passava a ser o inimigo público número um em Alvalade e alvo de todas a críticas de Cintra, que continuava a garantir que não fazia obras na pala.
No início de Agosto, o primeiro jogo da época foi em Alvalade, com o Tirsense, foi realizado com a central fechada. Em protesto, alguns membros da claque invadiram a zona encerrada, mas acabaram expulsos pela polícia.
Pouco dias depois, o Sporting conseguia um aliado de peso: o engenheiro Edgar Cardoso, considerado um especialista naquele tipo de estruturas. Foi a Alvalade, observou a pala, subiu ao seu topo e, perante as câmaras de televisão, saltou sobre ela. No final, garantia que estava “em condições”, que não precisava de obras e acusou os técnicos do LNEC de incompetência. A 12 de Agosto o problema ficava parcialmente resolvido. O Sporting aceitou fazer as obras indicadas pelo LNEC. Santana Lopes aceitou abrir a bancada antes de as obras estarem concluídas. E o Governo aceitou pagar a conta. Santana e Cintra assinaram um protocolo, trocaram elogios e o governante voltou a ser aplaudido em Alvalade.
A pala caiu em Novembro de 2002, quando o velho José Alvalade foi abaixo para dar lugar ao novo estádio.
O “presidente maluco”
Em 1992, Sousa Cintra conseguiu um feito que poucos julgavam possível. Foi à Holanda e contratou Bobby Robson, que treinava o PSV Eindhoven. O Sporting passava a ser orientado pelo homem que tinha estado 13 anos à frente dos ingleses do Ipswich Town e oito no comando da selecção inglesa. Com ele chegou também a Alvalade um jovem português, com funções de tradutor e adjunto, chamado José Mourinho e que, mais tarde, se tornaria o braço direito de Robson.
Em Alvalade estava agora um “cavalheiro inglês”, como rapidamente lhe começaram a chamar, um homem simpático, pragmático enquanto treinador, com um sentido de humor notável e que respirava futebol. Numa equipa onde se destacavam jovens jogadores como Luís Figo, Paulo Sousa e o búlgaro Balakov os resultados começaram a aparecer. Na época de 1993/94, Robson conseguiu um feito que há muito não se via no Sporting: nos primeiros seis jogos para o campeonato conseguiu seis vitórias e os “leões” lideravam a prova.
Só que depois veio um empate contra o Gil Vicente e uma derrota com FC Porto. E, depois, uma vitória com o Casino Salzburgo (2-0) para a Taça UEFA, em Alvalade e, 15 dias passados, desaire (3-0, após prolongamento) no jogo da segunda mão, agora na Áustria.
Durante o voo para Lisboa, o silêncio que a eliminação da Taça UEFA vergava os adeptos, dirigentes, atletas e técnicos foi quebrado. “Boa noite, meus amigos. Fala-vos o presidente do Sporting”, ouvia-se nas colunas de som do avião. E logo a seguir a voz subia de tom. Cintra falava numa “eliminação inadmissível”, lembrava “os altos investimentos” que tinham sido feitos no futebol do clube e os resultados financeiros negativos que a eliminação teria nas contas. E terminava garantindo que a derrota iria ter consequências.
Todos perceberam que “as consequências” seriam apenas uma: o despedimento de Bobby Robson, o que aconteceu logo na manhã do dia seguinte. Nunca o treinador inglês tinha sido despedido a meio de uma época na sua longa carreira. Robson, que morreu em 2009, lembrou o sucedido na sua biografia. “Aquele presidente maluco estava para ali exaltado a dizer: ‘Fomos eliminados das competições europeias, isto é um desastre para o clube, tenho de te mandar embora’. (...) Estava estupefacto, sentado no meu lugar do avião, enquanto o José [Mourinho] me traduzia estas palavras. Na manhã seguinte, fui chamado ao gabinete da direcção e demitido. Pela primeira vez em 15 anos, o Sporting estava em primeiro lugar no campeonato português — e ali estava eu a ser despedido.”
Menos de um ano depois, o “cavalheiro inglês” seguiu para o FC Porto, onde, em duas épocas, ganhou dois campeonatos e uma Taça de Portugal, numa final frente ao... Sporting.
Sousa, Pacheco e o Benfica
No dia em que o Sporting festejou o 87.º aniversário (1 de Julho de 1993), o Mercedes branco de Sousa Cintra entrou para a pista de tartan do Estádio de Alvalade. Esperavam-no centenas de adeptos em euforia. No interior da viatura estavam o presidente do Sporting e os jogadores Paulo Sousa e Pacheco. Tinham rescindido com o Benfica devido a ordenados em atraso e Cintra aproveitou a crise financeira do rival para os levar para o Sporting.
Nesse dia, Alvalade viveu horas intensas. Os sócios gritavam e cantavam como se tivessem ganho o campeonato. O presidente era levado em ombros até à tribuna de onde falou. “Esta é uma brilhante vitória do Sporting que deixa o Benfica de mão estendida”, afirmou, estimulando ainda mais os adeptos.
A festa só não foi maior porque Cintra tinha falhado o seu principal objectivo: “roubar” também João Pinto ao Benfica. O presidente do Sporting já tinha tentado comprar o seu passe ao Boavista, no ano anterior, mas o futebolista preferiu a Luz.
Em Alvalade, no dia de chegada de Sousa e Pacheco, os adeptos gritavam para Cintra: “Agora, queremos o Rui Costa.” O Sporting não conseguiu João Pinto nem Rui Costa, jogadores que acabaram por ser determinantes para a vitória do Benfica nessa temporada. O Sporting ficou no terceiro lugar, atrás do FC Porto.
O princípio do fim
Luís Figo, campeão do mundo júnior em Lisboa, anuncia a sua saída do Sporting em Março de 1995. Formado nas escolas do Sporting, o jogador foi para o Barcelona com um contrato milionário, mas a saga da sua saída já durava há quase um ano. Sousa Cintra considerava-o “imprescindível” para o clube, mas nunca conseguiu renovar o seu contrato e, com a sua saída limpa, o Sporting acabou por perder muito dinheiro.
Publicamente, o jogador chegou a culpar o presidente, acusando-o de ser pouco persistente (leia-se mais dinheiro) para a sua renovação. Mas a verdade é que Figo nunca quis renovar e há muito que era sabido que deixaria o clube.
Foi uma verdadeira novela. Primeiro, ainda em 1994, foi anunciado um contrato com os italianos do Parma. Depois falou-se de um novo acordo com a Juventus e, por fim, o Barcelona acabou por entrar na corrida para a ganhar. Pouco antes da saída do jogador, Sousa Cintra enfrentou uma assembleia-geral para apresentação de contas em que foi contestado como nunca antes. E, claro, Figo veio à conversa. O líder leonino, em desespero, prometeu que o jogador ficava, pago pela Parmalat. Ninguém acreditou. O “presidente do povo”, como muitos lhe chamavam, já não convencia. As críticas, por tudo e por nada, choveram até às 3h da madrugada.
A “revolução de Alvalade”
Já no final desse mês de Março aconteceu o que muitos chamaram “a revolução de Alvalade” que visava afastar Cintra com a sua concordância e transformar o Sporting num “clube-empresa”.
Um encontro em casa de José Roquete, no Restelo, em Lisboa, convenceu Sousa Cintra a não se recandidatar à presidência do Sporting. Na reunião esteve um “exército” da finança e da política. Um grupo de notáveis e poderosos sportinguistas que o populista Cintra nunca poderia vencer. Nada mais nada menos que o anfitrião Roquette, ex-“patrão” do Totta e empresário, José Manuel de Mello, líder do grupo financeiro Mello, Santana Lopes, o constitucionalista Miguel Galvão Telles, Tavares Moreira, presidente da Bolsa de Lisboa, Faria de Oliveira, ministro do Comércio Externo, Jorge Sampaio, presidente da Câmara de Lisboa e candidato à Presidência da República.
Carlos Monjardino, presidente da Fundação Oriente, não participou na reunião mas manifestou-se solidário com as decisões tomadas.
Pouco tempo depois Pedro Santana Lopes candidata-se a presidente e ganha, mas quem mandou no Sporting por muitos anos foi o poder financeiro, com Roquette aos comandos, enquanto presidente do Conselho Fiscal. Sousa Cintra saiu com discrição, de cabeça baixa. Despediu-se do cargo com a inauguração da estátua de um leão em frente à entrada para a bancada central do antigo Estádio de Alvalade.
O vidro partido, o leão “despedido” e as caldeiradas
Entre alegrias, tristezas, vitórias e derrotas os mandatos de Sousa Cintra também tiveram momentos divertidos (ou talvez não) que também marcaram os anos que esteve à frente do Sporting.
O mais conhecido é talvez o chamado caso da garrafa. Cintra dava uma entrevista em directo à TSF enquanto conduzia quando algo insólito aconteceu: "Que caraças, agora parti aqui o vidro do meu carro, pá... eh pá, que grande porra, pá! Estava a beber uma água... mas que coisa... é preciso um gajo ser estúpido... daquelas garrafas de deitar fora... Então não é que eu acabei de beber a água, enquanto falava consigo ao telefone... mas que coisa... é inacreditável, como é que é possível eu fazer uma coisa destas? Isto é quase inacreditável. Pensei que tinha o vidro aberto, pá. (...) Parti o vidro do meu lado."
Em Dezembro de 1991, Sousa Cintra e um grupo de jornalistas e adeptos aguardavam, junto à porta 10 A do antigo estádio a chegada do novo autocarro para a equipa de futebol. Uma “máquina”, anunciada pelo presidente como “dos melhores do mundo”.
Quando a viatura chegou, a felicidade do presidente do Sporting sofreu um abalo. “Que raio de bicho é este?!”, largou irritado apontando o leão “esquelético” pintado na lateral do novo e luxuoso autocarro. Cintra não queria acreditar. “Não quero este leão. Tem de ser um leão orgulhoso de cabeça e rabo levantado. Este bicho parece moribundo. Parece doente. Tem de ser um rei da selva, um leão à Sporting”.
Oito dias depois a viatura regressava com uma pintura nova. “Este sim, é um leão à Sporting!”, exclamou, feliz, Sousa Cintra, perante um leão de garras de fora.
Cintra é apreciador de uma boa refeição. Prefere a cozinha tradicional portuguesa e é um homem exigente com o que come. Todos os anos, no final da época desportiva, organizava uma caldeirada à pescador, como lhe chamava, para qual convidada os jornalistas que habitualmente acompanhavam o quotidiano do Sporting.
Recebia os convivas de avental e era ele mesmo que cozinhava o petisco, sempre muito apreciado por todos. As conversas giravam sempre entre os assuntos preferidos do presidente leonino: gastronomia, futebol e mulheres. E sobre mulheres, Cintra tinha uma certeza que repetia vezes sem conta: “As [mulheres] do Sporting são as mais bonitas do mundo.”