Fernando Guedes, a saudade e o exemplo de um “gentleman traquinas”

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Nelson Garrido

Cumpriu-se a ordem natural da vida. Fernando Guedes, o patriarca da família que detém a maioria do capital da Sogrape, morreu no passado dia 20, aos 87 anos, rodeado dos filhos, dos netos e dos bisnetos e com a empresa da sua vida mais sólida do que nunca e sem problemas de sucessão. Viveu mais dois anos do que o pai, Fernando van Zeller Guedes, um dos fundadores da Sogrape e de quem herdou o mesmo ar distinto e sentido de humor, o mesmo gosto por pintura clássica, porcelanas e faianças, bridge e caça e também a mesma máxima de vida: “Primeiro fazem-se amigos, depois fazem-se os negócios”.

Sobre a sua obra, Manuel Carvalho já escreveu tudo no obituário que lhe dedicou no PÚBLICO. Se Fernando van Zeller Guedes foi o grande ideólogo e criativo da Sogrape, o filho foi o seu maior engenheiro, o homem que ergueu os principais centros de vinificação do grupo e, já com a ajuda dos sucessores, o fez crescer e tornar global – na sua modéstia, gostava de dizer que o seu melhor investimento foi ter casado com a mulher que lhe deu os três filhos, Mafalda Lobo . Pela obra que construiu e pelos modos, ninguém merecia mais do que ele o título de “Senhor do vinho” em Portugal.

Fiz uma ou duas entrevistas a Fernando Guedes e cruzámo-nos em alguns eventos e apresentações de vinhos icónicos da Sogrape. O que mais apreciava nele era a sua simpatia e educação, o seu refinado sentido de humor e a forma como aliviava a tensão nos momentos mais formais. Seguia sempre, como lhe pediam, o protocolo, mas era o primeiro a desanuviar o ambiente, com a piada certa na hora certa e aquele riso luminoso e algo maroto. Não sei porquê, mas sempre achei Fernando Guedes um “gentleman traquinas”. Um verdadeiro sedutor.

Também apreciava nele a sua paixão pela terra e pelo vinho. Gostava mais das vinhas e das adegas do que dos salões e do ambiente glamoroso dos negócios. Não era daqueles que fugiam do Douro como o diabo da cruz, com medo ao calor e aos mosquitos. Apesar de a Sogrape ter hoje vinhas em várias regiões do país, em Espanha, no Chile, na Argentina e na Nova Zelândia, Fernando Guedes nunca esqueceu que tudo começou no Douro. O mesmo Douro onde nasce o tinto Legado, o seu último tributo aos fundadores e herança aos sucessores, um vinho extraordinário de uma vinha só, muito velha (da quinta do Câedo, São João da Pesqueira), ela própria um símbolo do Douro agreste e monumental.

O último Legado, da colheita de 2013, foi apresentado no passado mês de Março, na adega do Cavernelho, em Mateus, Vila Real, a que Fernando Guedes estava sentimentalmente ligado. Construída em 1960, dezoito anos depois da criação da empresa, foi a primeira casa do Mateus Rosé e chegou a produzir 9 milhões de litros de vinho – hoje, vinifica cerca de 4,5 milhões de litros, entre vinho do Porto e marcas como Planalto, Esteva e Vila Régia. A apresentação do Legado na primeira adega da Sogrape foi uma espécie de regresso às origens com o seu quê de despedida. Uma manifestação de saudade com uma mensagem subliminar aos sucessores, para que nunca esqueçam o lugar de partida da grande aventura da Sogrape. Simbolicamente, Fernando Guedes trazia sempre na carteira uma fotografia do pai montado num burro durante a primeira vindima da empresa no Douro, em 1942. 

Nos últimos anos, embora já estivesse afastado da gestão, Fernando Guedes continuava a ir quase diariamente à empresa. Gostava de estar a par de tudo. A primeira informação que lhe passavam era o resumo das vendas do dia anterior. A sua vida era a Sogrape. Nisso, tem um bom herdeiro no filho Salvador. Apesar de incapacitado fisicamente e de só comunicar com os olhos, em função da Esclerose Lateral Amiotrófica de que padece, continua com as suas funções intelectuais intactas e a participar dentro do possível na vida da empresa, hoje liderada pelo irmão Fernando.

Em Setembro de 2017, Salvador Guedes escreveu-me uma simpática carta a propósito de uma crónica sobre a forma emocionante como tem lutado contra a doença. Mesmo comunicando apenas com piscares de olhos que vão sendo traduzidos num computador, Salvador Guedes fez questão de “ditar” cada palavra da carta, que alguém escreveu depois à mão. Na era da comunicação digital, tanto Salvador como os irmãos continuam fiéis às cartas manuscritas, que são uma das formas mais respeitosas de responder a alguém.

Nessa carta, Salvador Guedes lembrava a ética dos Guedes e da Sogrape. “Regemo-nos por valores fortes porque acreditamos que essa é a única forma de fazer perdurar as relações e os negócios”. Na história da empresa há inúmeros episódios que testemunham essa forma de actuar. Um deles já foi recordado aqui e teve como protagonista Fernando van Zeller Guedes. Em 1956, o fundador da Sogrape foi visitar Sidney Rawlings, o director da então influente distribuidora Rawlings & Sons, ao hospital St. Thomas, em Londres, onde entrara com problemas cardíacos. Sidney Rawlings agradeceu-lhe a visita e, no final, prometeu-lhe estudar uma possível parceria quando saísse do hospital. A Sogrape estava a atravessar um período difícil, com a quebra do mercado do Brasil. Depois de regressar a Portugal, chegou à empresa uma encomenda do restaurante Braganza, de Londres, de 200 caixas de vinho. Fernando van Zeller julgou que a encomenda tinha sido intermediada pela Rawlings & Sons e mandou enviar uma nota de crédito à distribuidora com o valor da respectiva comissão. Algum tempo depois, recebeu um telefonema da Rawlings, a dizer-lhe que não tinham direito a essa comissão, porque não tinham sido intermediários, mas que, a partir daquele momento, aceitavam ser os agentes da Sogrape em Inglaterra. Quinze anos depois, a Rawlings & Sons já comercializava 340 mil caixas (mais de 4 milhões de garrafas) de Mateus Rosé.

Um outro episódio envolveu o próprio Fernando Guedes. Na véspera ou pouco antes de ser lançada a primeira colheita do vinho Duque de Viseu, do Dão, todos se tinham esquecido de um pormenor importante: obter a anuência do dito, Miguel Rafael de Bragança, pretendente também ao título de Infante de Portugal. Todos menos Fernando Guedes, que só depois de informar e chegar a um acordo com o irmão de D. Duarte Pio deu luz verde ao lançamento do vinho.

A jornalista Ana Sofia Fonseca privou bastante com Fernando Guedes nos últimos anos. No dia do seu funeral escreveu: “Há uns tempos, a meio de uma conversa, disse-me: ´Vivo na idade da saudade. Não me importo, saudade é uma palavra bonita´. Fica a saudade, Senhor Fernando Guedes”. Fica sim. A saudade e o exemplo.

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