Joana Vasconcelos: “Se as pessoas saírem daqui a pensar e com um sorriso nos lábios, é excelente.”
É de Joana Vasconcelos a primeira individual de um artista português no Guggenheim de Bilbau. A artista plástica conversou com o PÚBLICO sobre I’m Your Mirror, que se inaugura esta sexta-feira.
Iniciou-se a expor na década de 1990, tendo o seu trabalho começado a ganhar expressão internacional, principalmente a partir de 2005, o ano em que participou na Bienal de Veneza com a peça A Noiva. Em 2010, a sua primeira retrospectiva celebrou-se no Museu Berardo, em Lisboa, e em 2012 tornou-se na primeira mulher e artista mais jovem a expor no Palácio de Versalhes, em Paris, tendo, um ano depois, representado o país na Bienal de Veneza, com um cacilheiro transformado no pavilhão flutuante de Portugal. Agora ei-la no Guggenheim de Bilbau, em Espanha.
Nesta exposição está reflectido o seu percurso de 20 anos, ao mesmo tempo que é revelada uma série de peças novas. Como é que olha para esta mostra, no contexto desse mesmo trajecto?
Estive ontem a discutir isso com os comissários – o Enrique [Juncosa] e a Petra [Joos] – e eles acham que se deve chamar antológica a esta exposição, porque ela vai atrás – entre 1996 e 1998 – e depois vem daí para a frente, contendo peças de diferentes períodos. Nem todos estão representados da mesma maneira, mas tem esse cariz antológico.
As peças novas que aqui estão foram desenvolvidas a pensar especificamente nesta exposição ou foram trabalhadas sem esse intuito?
Aconteceram as duas situações. Quando o Enrique e a Petra foram ao meu atelier em Lisboa, pediram-me para fazer um site specific para o átrio de entrada, a Valquíria. Para a feitura desse trabalho vim cá e fui-a desenvolvendo a pensar nesse espaço. Depois perguntaram-me que projectos é que tinha entre mãos – tenho sempre coisas a serem trabalhadas – e mostrei-lhes o que estava a ser feito. Tinha acabado de fazer o Pop Galo, que eles adoraram, e desde aí quiseram-no ter aqui, e estava também a desenvolver a máscara I’ll Be Your Mirror e o Solitário, o anel de noivado, que eles acabaram por escolher também. A partir daí a máscara passou a ser a peça central da exposição, como se reflectisse as outras, e o anel de noivado, enquanto peça para o exterior, também.
Foi fácil dialogar com as formas curvilíneas da arquitectura de Frank Gehry, seja no grande átrio do museu com a monumental valquíria, ou no exterior, no caso das duas peças que ficaram a rodear o edifício?
Muito fácil. A arquitectura do Frank Gehry é muito emotiva e tem muito movimento, no interior e exterior, e as minhas peças, como a Valquíria, sendo uma peça muito barroca, foi-me fácil adaptá-la ao espaço escultórico do átrio. Na verdade, o átrio é tanto um espaço escultórico como arquitectónico. Há um diálogo com a minha peça a desenvolver-se em espiral acompanhando o movimento criado pelo Frank Gehry. Foi simples ler o lugar. No exterior, fomos andando à volta do museu, que tem uma linha de esculturas, das tulipas do Jeff Koons à aranha da Louise Bourgeois, até chegarmos a um pátio de água muito bonito desenhado pelo Gehry e que estava vazio. Acabou por ser aí, na água, que dispusemos o anel. Como o anel é feito das jantes metalizadas dos carros, acaba por jogar com as chapas metalizadas do edifício. Já o galo está no meio das árvores, à esquerda do Puppy do Jeff Koons.
Esta mostra é muito ambiciosa. Que tipo de desafios é que a feitura e montagem de uma exposição desta envergadura acarretou para si?
Esta exposição é uma espécie de fronteira que ainda não foi ultrapassada, portando não se sabe bem o que está do outro lado…[risos]. Não há historial. O Guggenheim é um colosso. Não conheço ninguém que tenha feito isto, portanto não consigo explicitar o que se tem de fazer. Nós temo-nos vindo a adaptar. Há dois anos que andamos a trabalhar com eles. É uma equipa muito diferente. O facto de ser uma equipa americana introduz logo diferenças na forma de trabalhar, nos contratos, na maneira como pensam. É um sistema ao qual não estamos habituados. Por norma, operamos com estruturas e museus europeus. A um certo nível, são mais exigentes. Há mais entraves e regras do que aquilo a que estamos habituados. Ou seja, é um sistema que exige uma adaptação contínua. Nesse sentido, o grande desafio é ser capaz de, profissionalmente, adaptar-me a estas grandes estruturas, que acabam por ser máquinas gigantes e complexas na forma como operam.
O título da exposição (I’m Your Mirror), para além das alusões a Nico e aos Velvet Underground, e da dimensão individualizada do jogo de espelhos, poderia ter outra leitura, já que a sua obra funciona também como espelho reflector de Portugal. Pelo menos opera a partir de elementos simbólicos que remetem para noções de portugalidade.
Sem dúvida. A partir do momento em que estou a fazer uma antológica, essa dimensão está lá, porque o meu percurso reflecte o país onde vivo e quem eu sou. I’m Your Mirror é, no fundo, uma maneira de afirmar que eu sou também o espelho do país onde vivo e daquilo em que me tornei enquanto pessoa e artista. Estas peças, de diversas épocas, mostram diferentes partes de mim e também, obviamente, de onde venho. A máscara é feita de espelhos e eles simbolizam essas partes em que acaba por estar reflectida a minha identidade, de onde venho ou o que me vai envolvendo – não é, aliás, por acaso que a exposição começa com o coração de Viana e termina com a peregrinação a Fátima.
Quando expõe fora de Portugal, como é o caso, nessas peças as conotações simbólicas de alguma forma diluem-se. Existe um olhar mais imparcial ou estetizante. Em Portugal, pelo contrário, porque estamos conscientes desse sistema de representações e pela relação de proximidade, tanto podem provocar forte adesão como resistências.
Sim, completamente. Ainda ontem estava aqui com um grupo de bascos (uns arquitectos e outros coleccionadores) e todos eles tiravam imensas fotos ao galo. Sabiam que era um símbolo português e um deles até dizia que a avó tinha adquirido um há uns anos, mas fixavam-se era nas luzes ou na música, e discorriam sobre a sua modernidade. Ou seja, não faziam nenhum tipo de projecção sobre o galo. Estudei a história do galo e recuperei os desenhos clássicos. Foi feito um trabalho sério e depois dei-lhe um aspecto contemporâneo. E isso é que conta para a visão e perspectiva do futuro. As pessoas, quando chegam aqui sem estarem contextualizadas na portugalidade, identificam o símbolo, reconhecem-no e acham que ele tem actualidade. É isso que faz a obra.
Quando se fala da sua obra, nomeiam-se sempre os aspectos formais (a escala, as cores vibrantes, o sentido lúdico), mas também existe nela uma dimensão mais reflexiva, que remete para questões sociopolíticas ou identitárias. O que desejava que as pessoas levassem daqui?
Ontem, numa visita guiada, uma senhora dizia-me: “Saio daqui com um sorriso nos lábios, mas a reflectir sobre a minha pessoa e o que me rodeia.” É isso. Quando se tem uma peça como A Noiva e se fala sobre os tabus ligados à mulher, claro que há muitas pessoas que ficam a pensar nesses assuntos, o mesmo acontecendo com a peregrinação a Fátima, ou com a máscara. Há várias coisas que tocam as pessoas segundo a sua biografia e vida. Não é possível controlar o que levam daqui, mas se ficarem com mais sentido crítico e um olhar reflexivo sobre elas próprias, é óptimo. E se saírem a pensar e com um sorriso nos lábios, é excelente.
Num dos textos que enquadra a mostra é dito que as suas novas peças representam também a “realidade do mundo à volta”. Nos últimos anos o mundo tornou-se muito convulso – crise económica, a imigração, a violência sexual, a democracia debilitada. Até que ponto a exposição acaba também por reflectir algumas destas coisas?
Há peças como a Burka, que foi feita quando se discutia a questão do véu em França, e que não perderam a sua actualidade. O mesmo acontece com A Noiva, que acaba por espelhar muitos dos tabus em relação às mulheres que é algo perfeitamente actual, com os movimentos contra a exploração sexual das mulheres ou os movimentos feministas. Ou seja, existe uma série de questões que, finalmente, começaram a ser faladas e que eram tabu até há pouco tempo. Nesse sentido existe uma série de trabalhos que mantém a sua pertinência. A peça central da exposição, a máscara, é no fundo sobre isso – é essa ideia de deixar cair as máscaras, de nos deixarmos de ilusões. É essa ideia de as pessoas se atreverem a falar da realidade sem medos. Espero que no futuro as pessoas vivam com menos máscaras do que aquelas que estão habituadas a pôr.
Já está confirmado que a exposição irá a Serralves no próximo ano?
Essa história é do melhor e é muito portuguesa...[risos]. Até nisso a portugalidade, para o bem e para o mal, me acompanha. Não posso responder a isso porque não seria correcto. A exposição é produzida pelo Guggenheim e exportada para Serralves. É um assunto entre eles. O que posso dizer é que as conversações estão a correr bem e que estamos a trabalhar sobre a exposição. Agora os acordos entre eles não são comigo...
Certo. Mas supomos que é seu desejo que tal venha a acontecer?
Acho fundamental irmos a Serralves. Roterdão já está confirmado e existem outros museus pelo mundo interessados, porque o modo de funcionamento do Guggenheim é esse: trata-se de produzir e depois exportar. Seria uma pena que esta exposição não passasse por Portugal como é por de mais evidente. Mas parece-me que vai correr tudo bem.