A nova ópera jazz de Kamasi Washington
O americano tem vindo a criar uma música evocativa da memória do jazz mas não ficando recluso dela.
Na música, e no porte físico, parece uma daquelas personalidades onde coabitam a inocência e a ambição desmedida. Um Francis Ford Coppola da música. Logo ao primeiro álbum, The Epic (2015), o saxofonista e compositor americano foi cunhado como uma das figuras do jazz que mais criou condições para o entusiasmo transversal em torno do género. Na verdade, não fez nada. Quer dizer, fez imenso: gravou esse magnífico triplo-álbum e o ano passado outro excelente registo, Harmony Of Difference, ao mesmo tempo que ia dando concertos pelo mundo, muitos deles em locais onde o jazz raramente aporta, como os festivais pop-rock para multidões.
O que queremos dizer é que foram mais a circunstâncias exteriores (cumplicidades com músicos de outros territórios, de Kendrick Lamar a Flying Lotus) que acabaram por ditar esse interesse. Aliás, em conversa há dois anos pareceu-nos que esse tipo de questões não lhe importa. “Não olho para o jazz como fronteira, mas como hipótese sincrética, qualquer coisa que em vez de se fechar sobre si própria, pode provocar novos desafios através da transcendência”, dizia-nos. O que lhe interessa é a sua arte, assente num edifício jazzístico, sim, mas sem limites definidos, alimentando-se de blues, funk, soul, gospel e o que mais exista à volta.
Se o álbum de estreia era de extravagante ambição, Heaven And Earth não lhe fica muito atrás, com orquestra, coros, vozes (de Patrice Quinn a Dwight Trible) e uma série de grandes músicos de jazz à volta abordando num álbum-duplo (a versão fisíca contém mais um disco) um daqueles conceitos maiores do que a vida, o lugar onde a Terra (realidade) se encontra com o Céu (idealização, utopia, transcendência).
Alguns dos sectores mais tradicionais do jazz referem que não tem transportado nada de novo, mas perante a multiplicidade de ideias, musicais ou conceptuais, desenvolvidas (humanismo afro-americano, ritmos afro-latinos, vozes corais, orquestrações majestosas, consciência sociopolítica, música onde balanço corporal e espiritualidade se tocam, num contínuo entre passado e presente) fica-se a pensar o que é que isso significará ao certo.
O que não quer dizer, claro, que a atenção à tradição do jazz não esteja aqui vincada. Mas é uma filiação livre de constrangimentos, como se a cada tema o músico e o seu grupo fossem reerguendo algo que estava disperso no espaço, acumulando peças que, no seu conjunto, acabam por constituir um corpo consistente.
A música contém quase sempre algo de sumptuoso, combinação de jazz e funk, fisicalidade e imaterialidade, afecto e ferocidade, num todo de grande exuberância. Ao longo dos últimos anos Kamasi Washington tem vindo a criar uma música que consegue ser tão comunicativa quanto elaborada, evocativa da memória do jazz, mas não ficando recluso dela, numa nova relação sonora que vai conquistando cada vez mais seguidores.