De novo a lei da gestação de substituição: a posição do governo do PSOE e o futuro próximo da questão em Portugal
Importa enfrentar a gestação de substituição como questão central dos Direitos Humanos, que não se resolve de supetão, tendo a coragem de ponderar uma solução madura.
Em entrevista ao El País, mal tomou posse o novo Governo espanhol, a sua vice-presidente, Carmen Calvo, elegendo as prioridades governativas, reiterou o puro e duro “contra” aos ventres de aluguer. O El País chamou o tema escaldante a título da entrevista de Carmen Calvo: “As barrigas de aluguer são a utilização do corpo das mulheres mais pobres.”
Por coincidência interessante, isto aconteceu antes de ter decorrido um mês sobre a decisão do nosso Tribunal Constitucional, que, por unanimidade, considerou inconstitucional a lei da gestação de substituição. E aconteceu logo a seguir aos dividendos que a direita retirou daí. E aconteceu logo depois de a esquerda (argutos primeiro-ministro e Partido Comunista à parte) animar um faz de conta que Tout va bien, Monsieur Le Malaise, aspirando a minimizar o estrago da sua obra legislativa. E aconteceu também, logo depois de o centro esquerda, agrilhoado ao seu grupo parlamentar dividido, alvitrar outra lei, sem explicar porque será ela urgente assim.
A que se deveu a declaração de Carmen Calvo em Espanha? Deveu-se a que o Ciudadanos tinha anunciado uma iniciativa legislativa para legalizar a gestação de substituição gratuita.
Ora, o não do PSOE era esperado. Rejeitou, em 2017, no 39.º Congresso, a maternidade sub-rogada, por 175 votos contra 31. Tem consigo o Comité de Bioética, a Red Estatal contra el Alquiler de Vientres (50 associações, movimento LGBT incluído), o Podemos, a Igreja Católica. E driblou a tibieza do PP dividido. Já inesperado foi, talvez, que a vice-presidente do Governo erigisse a questão em prioridade.
Admitiriam vários algo mais “político” nesta primeira entrevista. Era possível que Carmen Calvo, devendo a vice-presidência do Governo ao talento na interlocução com Soraya Saenz sobre o art.º 155 da Constituição espanhola, puxasse pelos galões aí.
A declaração contra as barrigas de aluguer foi provavelmente manchete da entrevista porque espelha a eficácia comunicativa da ministra em toda a linha. Sabe Carmen Calvo que as ideologias débeis e a avalanche do populismo têm por contraponto a empatia que gera quem assume com humanismo problemas sociais, questões ditas fraturantes. A atenção às desigualdades, à pobreza, às minorias, às tragédias quotidianas anima confiança cidadã nas agendas que a reconhecem como prioritária e, sobretudo, avaliza os políticos que se expõem convictamente em sua defesa. E Carmen Calvo tomou rédeas ao essencial da liturgia democrática agitando a bandeira contra as barrigas de aluguer. Ante o cenário de pactuar Espanha com este negócio bilionário e dramático, reafirmou o não de princípio.
Por cá, após a decisão do Tribunal Constitucional, ficou uma incógnita sobre o próximo capítulo da lei da gestação de substituição. Ela não constou da agenda de nenhum dos recentes Congressos dos maiores partidos, muito embora Portugal tenha ousado tomar a decisão de legislar sobre a gestação de substituição gratuita e isso acarrete evidente responsabilidade política.
É verdade que uma lei da gestação de substituição gratuita existe no Reino Unido há mais de 35 anos. Mas aí, a gestante tem sempre um relacionamento próximo com o casal que pretende a gestação de substituição; a criança gerada é registada como filha da gestante; esta goza de um prazo de reflexão para decidir sobre a entrega da criança ou a assunção da maternidade; é-lhe reconhecido o direito a manter uma relação próxima com a criança; e, sobretudo, o cometimento da parentalidade ao casal compete ao juiz, que decide segundo o superior interesse da criança.
O que vai acontecer a propósito da gestação de substituição entre nós agora? Assumir-se-á finalmente, como é desejável, que é um problema nevrálgico a ser chamado ao núcleo da agenda política, sob pena de nova precipitação legislativa e de nova derrapagem?
Importa enfrentar a gestação de substituição como questão central dos Direitos Humanos, que não se resolve de supetão, tendo a coragem de ponderar uma solução madura. Não agindo, portanto, como quem fabrica um brinquedo mais ou menos ansiado.
Se o pão do feminismo, dos direitos das crianças, é ainda o pão que o diabo amassou, importará lutar por que reverta em pão da justiça. Em Espanha, em todo o lado: não deixando Portugal de fora.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico