A Europa não está preparada para o fim do Ocidente
Trump significa uma ruptura com o que estava adquirido na relação transatlântica desde o pós-guerra. A Europa não está preparada para ele.
1. Na sua habitual carta aos líderes europeus, o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, avisou-os de que têm de encarar de forma realista “o pior dos cenários”, lembrando que as tensões transatlânticas vão muito para além da guerra comercial.
O “pior dos cenários” é, evidentemente, a mudança de 180 graus da política do Presidente americano relativamente à Europa. “Enquanto discutimos as migrações ou a reforma do euro, é preciso termos consciência do contexto geopolítico que se seguiu ao G7”, diz a carta. “Apesar dos nossos esforços para manter a unidade do Ocidente, as relações transatlânticas estão sob imensa pressão devido às politicas de Donald Trump”.
A carta de Tusk tem a virtude de colocar o dedo na ferida, numa altura em que Angela Merkel, o alvo principal da “guerra” do Presidente americano contra a Europa, parece estar mais enfraquecida do que nunca. Trump será hoje, em Bruxelas, o elefante na sala. O problema maior é que estarão sentados à mesa alguns dos seus novos aliados do lado de cá do Atlântico.
O efeito Trump é hoje incontornável. A Economist citava um diplomata europeu para descrever a nova realidade: “Os meus colegas regressaram da cimeira do G7 como se tivessem colocado as mãos numa torradeira”. O pânico instalou-se nas principais capitais europeias, a começar por Berlim. Ninguém sabe o que esperar da próxima cimeira da NATO, a 11 e 12 de Julho. “A Europa não está preparada para o fim do Ocidente”, diz um conselheiro da chanceler, citado pelo Politico. Em matéria de segurança e defesa, acrescenta, “não há plano B”.
Os principais responsáveis políticos europeus caíram em si, depois de um período em que foram acalentando algumas ilusões. Trump significa uma ruptura com o que estava adquirido na relação transatlântica desde o pós-guerra. A Europa não está preparada para ele.
2. A América foi a força motora da integração europeia. Com três objectivos estratégicos: garantir a paz, resolver a questão alemã e defender o mundo livre da ameaça soviética. A NATO, fundada em 1949, foi a mais longa e bem sucedida aliança militar do século XX. A União Soviética implodiu sem que tivesse de disparar um tiro. Sobreviveu ao fim da divisão da Europa, transformando-se num produtor de segurança à escala global. Alargou-se quase até às fronteiras da Rússia, acompanhando o alargamento da UE. Enfrentou crises. Accionou pela primeira vez o Artigo 5 na resposta ao 11 de Setembro. Esteve e está no Afeganistão. Desempenha missões de treino no Iraque. Franceses e britânicos participaram com os EUA no combate ao Daesh. Garante a segurança na fronteira europeia com a Rússia, desde que a crise ucraniana e a ocupação da Crimeia puseram fim às dúvidas sobre o revisionismo expansionista de Moscovo.
Durante algum tempo, os aliados europeus, ainda acreditaram que o hábito acabaria por fazer o monge. O Presidente da America First, que declarara a NATO obsoleta, "partiu a loiça" na primeira cimeira da NATO em que participou, em Maio do ano passado, recusando qualquer referência ao Artigo 5, garante da defesa colectiva. Mas as sucessivas visitas a Bruxelas de Mike Pence, Rex Tillerson ou James Mattis tentaram apagar o fogo, reafirmando o compromisso transatlântico. A ilusão perdurou. Hoje, já não existe. Como disse a chanceler, “a Europa está, pelo menos em parte, por conta própria”. O outro lado da moeda é que ninguém tem ilusões sobre a capacidade europeia de garantir a sua própria segurança nem do longo caminho para criar uma capacidade militar autónoma, suficientemente dissuasora.
A chanceler alemã foi sempre o alvo principal de Trump. “Os seus constantes ataques verbais a Merkel são perigosos”, diz Judy Dempsey, do Carnegie Europe. E não apenas por causa do excedente comercial, dos Mercedes e BMW que “poluem” as estradas americanas, ou dos gastos, curtos, com a defesa. Merkel encarna os valores fundamentais que estão na base da relação transatlântica e que garantiram a sua solidez. Os mesmos que Trump pura e simplesmente despreza. “É quase como se quisesse uma mudança de regime em Berlim”, diz ainda a analista do Carnegie.
O Presidente francês ainda tentou a “lisonja” para dissuadir o seu homólogo americano de rasgar o acordo nuclear com Teerão. O resultado foi nulo. O problema é que, sem os EUA, não há motivos para que o regime de Teerão o respeite. Apenas os EUA poderiam garantir que não haveria “mudança de regime”.
3. Contra as expectativas, Merkel conseguiu manter a Europa unida, quando foi preciso enfrentar a Rússia. Putin subestimou-a. Trump revela-se uma arma muito mais poderosa. Como escreve o New York Times em editorial, o Presidente “afasta os aliados, cancela acordos, ignora tratados de comércio, elogia os déspotas e aplaude os demagogos populistas”. Na Europa, é hoje o principal aliado dos partidos anti-europeus, xenófobos e identitários. Continua a diário americano: “Houve um tempo em que uma Europa unida politica, económica e militarmente era uma prioridade estratégica dos EUA”. Durou 70 anos. Esse tempo acabou?
Ainda parece haver em Washington alguma resistência. Enquanto, na semana passada, Trump invectivava a chanceler, dizendo que os alemães se tinham finalmente virado contra ela, James Mattis recebia no Pentágono a sua homóloga alemã num ambiente cordial, insistindo embora em que a Alemanha tinha de aumentar significativamente os seus gastos com a defesa. Numa entrevista ao Wall Street Journal, Mike Pompeo garantia que o seu Presidente estava apenas a adaptar a política externa às condições do pós-Guerra Fria. Não vê a constante tensão com Berlim como uma mudança “permanente”. Desde que a Alemanha reduza o excedente e pague o que deve pela sua defesa. A questão politica fica de fora. Trump apoia as forças europeias que são contra a UE, contra os imigrantes e contra a globalização. Um pormenor.
4. É tudo isto que está à prova em Bruxelas. Não é apenas uma cimeira com um conjunto de temas difíceis ou “impossíveis”. Merkel precisa de um entendimento europeu que lhe permita a sobrevivência do Governo. A Europa precisa de uma estratégia de longo prazo para a questão da imigração, que vai durar muito tempo, enquanto o Mediterrâneo for a fronteira entre os países mais desenvolvidos do mundo e os mais pobres. O eixo franco-alemão tornou-se ainda mais indispensável para combater a crescente fragmentação da Europa. O problema é que os “inimigos” já estão dentro das muralhas.