Foi-se o preconceito, venham os turistas
Pela terceira vez, mais de uma centena de artistas está em Loures para pintar paredes. Há cada vez mais privados a quererem intervenções nos seus prédios -- e chamar turistas é missão assumida pela autarquia.
Obed Osorio é salvadorenho mas viu-se grego para cá chegar. Voou de El Salvador para a Costa Rica, dali para Espanha, aterrou finalmente em Portugal ao fim de quase dois dias em trânsito. Foram de madrugada buscá-lo ao aeroporto de Lisboa e, poucas horas depois, já estava empoleirado numa grua a tentar dar cor a uma desinteressante empena do bairro da Quinta do Mocho, em Loures.
Porque veio de tão longe? “Acho que é porque sou louco”, sorri Obed, 25 anos, operário têxtil que ambiciona tornar-se artista a tempo inteiro. “No meu país não há arte urbana como aqui na Europa. Há alguns artistas, mas o panorama é muito limitado”, diz, limpando o suor do rosto, o homem que assina as suas obras como Abraham. Atrás de si, ainda em traços largos, ganha forma o que parece ser o rosto de uma mulher africana, com um turbante na cabeça e um medalhão ao peito. Quando a pintura estiver pronta, vai ser uma das mais visíveis da estrada que liga Camarate a Sacavém.
E vai ser mais uma a enfeitar a Quinta do Mocho, que nos últimos anos se transformou numa galeria de arte urbana a céu aberto, primeiro para limpar a má fama do bairro municipal, agora para atrair turistas ao concelho. “O objectivo primeiro era mostrar à população que o bairro era pobre, sim, mas de gente honesta e trabalhadora”, diz Maria Eugénia Cavalheiro, vereadora da câmara de Loures. “Estamos a apostar fortemente na inclusão desta arte pública nos roteiros turísticos de Lisboa.”
Vasco Rodrigues, que se orgulha de ter sido “a primeira pessoa a levar visitantes à Quinta do Mocho”, logo em 2014, depois das intervenções artísticas iniciais, está constantemente a guiar turistas por aquelas ruas largas e sem interesse, típicas de bairro de realojamento, a que a arte urbana veio animar. Ainda no domingo passado orientou uma visita para 30 pessoas, a maioria portuguesas e brasileiras, mas também de outras quatro nacionalidades. “Lembro-me perfeitamente que, das primeiras vezes que trouxe portugueses, eles ficavam de pé atrás”, conta, recordando a conotação do Mocho como “bairro problemático” em que poucos queriam entrar.
“Os estrangeiros foram os primeiros a vir”, diz Vasco, com vinte anos de experiência em arte urbana. A criação da plataforma Loures Arte Pública, que divulga os trabalhos do concelho todo o ano e que, até domingo, é um festival em que participam 120 artistas de 20 países diferentes, “fez com que houvesse uma descentralização da arte na Grande Lisboa”, opina Vasco Rodrigues. “Os estrangeiros que vêm e querem ver arte urbana já sabem que não ficam só em Lisboa.” Para isso contribuiu a presença, nos três festivais Loures Arte Pública que já se realizaram, de nomes reconhecidos no panorama. Como o americano Arcy, que há poucos dias pintou uma minhota de faces rosadas, ou o luso-francês Hopare, que já interveio no Mocho e este ano regressa.
Nesta edição, para a qual houve 400 candidaturas de artistas, a câmara decidiu apostar mais em emergentes, pessoas que nunca tinham sonhado com a existência de Loures. É o caso de Obed, mas também do grego Nikolaos Tsounakas, que se encarregou de pintar um tigre num posto de transformação de electricidade em Santo António dos Cavaleiros. “As pessoas daqui vêm dar-me cerveja e bananas”, comenta, surpreendido. “Este bairro é de gente trabalhadora, que não vê este tipo de arte todos os dias. Pareceu-me mais importante fazer isto aqui do que em Lisboa”, justifica.
Não muito longe, protegido por um chapéu-de-sol com o logótipo da autarquia, o mexicano Toner Linaje põe na parede uma mulher com o filho às costas no meio de um deserto de cactos. E as argentinas Medianeras, que acabaram de chegar, ainda só estão a pôr a tinta branca para depois fazerem surgir um menino deitado a ler um livro numa das paredes da Escola João Villaret, no Infantado. Este, como tantos outros do festival, é um espaço público, mas há cada vez mais privados a pedirem intervenções nos seus prédios. “Vês como são as pessoas? Precisam de ver. Há muito preconceito com arte urbana, por isso são importantes festivais como este, para dar visibilidade”, comenta uma das artistas.
Visibilidade é coisa que a Quinta do Mocho tem ganhado ininterruptamente. “Algumas lojas que estavam fechadas abriram, alguns restaurantes ganharam nova dinâmica”, afirma Eugénia Cavalheiro. Vasco Rodrigues confirma esse dinamismo económico e acrescenta: “Senti uma diferença no orgulho dos moradores. Muitas vezes estou com um grupo de turistas e vêm moradores falar com eles, sugerir sítios para ir, coisas que não podem perder.” O Loures Arte Pública termina no domingo, as obras estão lá, para quem as quiser ver, o ano inteiro.