“Não podemos deixar que a história da humanidade fique nas mãos de gente xenófoba e egoísta”
O bispo de Leiria-Fátima será cardeal eleitor a partir de quinta-feira. O padre que foi operário defende os “pactos globais” com que o Papa Francisco quer mobilizar o mundo, governos, organizações e sociedade, para responder a uma “catástrofe humanitária” e aos “mediterrâneos” de onde a solidariedade desapareceu
A tese com que o estudante António Marto se doutorou em 1977 foi premonitória do que viria a ser a sua vida, desde o tempo como padre-operário numa fábrica de metalurgia, inspirado no Vaticano II, até à missão que lhe pede agora o Papa Francisco, “um homem de esperança”, que admira. “Esperança cristã e futuro do homem. Doutrina escatológica do Concílio Vaticano II” intitulava-se a tese.
Na próxima quinta-feira, e quarenta e um anos depois desse tempo, o actual bispo de Leiria-Fátima é empossado cardeal pelo Papa Francisco, um acto que considera ser por Fátima e por confiança pessoal. “Se soubesse que eu era contrário à reforma da Igreja não me escolheria. Nesse sentido, ele sabe perfeitamente que tem um apoiante”, diz em entrevista ao PÚBLICO realizada a uma semana da posse.
Hoje, num tempo diferente, um padre é “operário de outra maneira”, considera. “É estar no meio do povo e caminhar com ele de modo evangélico”. D. António Marto nasceu há 71 anos em Tronco, concelho de Chaves.
No espaço de poucos dias, milhares de crianças foram separadas dos pais na fronteira dos EUA, a Itália recusou receber migrantes e anunciou o recenseamento de ciganos, e a Hungria vai criminalizar a ajuda aos migrantes. Onde está o limite?
É uma surpresa, isto a que estamos a assistir, do ponto de vista de mudança de mentalidade. Assemelha-se a uma catástrofe humanitária sem precedentes próximos.
Ontem [20 de Junho] assinalou-se o Dia Mundial do Refugiado, de 17 a 24 decorre uma acção internacional de sensibilização a favor dos refugiados e migrantes, promovida pela Caritas, com o título “Partilhar a Viagem”. O próprio Papa tomou posição a favor dos pactos globais mundiais. Embora não sejam vinculativos, são todavia para assumir quer através das Nações Unidas, quer através dos governos, em ordem ao acolhimento e protecção dos migrantes e dos refugiados.
Como passa a ser possível fazer-se pactos globais quando os EUA saem do Conselho de Direitos Humanos da ONU?
Não podemos ficar de braços cruzados. Temos de fazer uma outra acção, alternativa, de sentido positivo, não podemos deixar que a história da humanidade fique nas mãos só de gente xenófoba, egoísta e individualista, que olha só para a sua comodidade, expulsa e não recebe os que são forçados a emigrar por motivos de conflito, de guerras, como acontece na Síria, de perseguições, de miséria, de fome, de desastres ambientais.
E depois não os deixam entrar, como aconteceu em Itália.
Veja-se a Itália, que acolheu tantos imigrantes. Estamos a assistir aos nossos mediterrâneos - já não é um Mediterrâneo, é uma metáfora. Navegam no mar da falta da nossa hospitalidade e da solidariedade, seja a nível mundial ou europeu.
A conferência episcopal dos EUA tomou uma posição crítica sobre a separação das crianças das respectivas famílias, dizendo que se tratava de uma imoralidade. Também admitiu a aplicação de penas canónicas aos católicos que participassem nessas acções. Concorda?
Essa ideia não está concretizada. Para mim, o mais significativo é que tenha sido tomada uma posição firme [por parte dos bispos dos EUA] e tenha sido avalizada pelo próprio Papa, que disse estar a favor da posição dos bispos e que era imoral e inumano separarem as crianças dos seus pais.
O que podem ser, em concreto, esses pactos globais?
Por exemplo, acções de sensibilização como esta [da Caritas] a nível global. Em primeiro lugar, para os governos assumirem uma responsabilidade própria e que tem de ser também solidária e generosa, de abertura, em ordem ao acolhimento, protecção, à promoção e à integração. Segundo lugar, para a sociedade civil, através das organizações não-governamentais, religiosas. As organizações católicas para a migração e refugiados fizeram um manifesto de solidariedade, com esta tomada de posição do Papa com os pactos globais.
E também para [o resto da] sociedade promover o acolhimento, o encontro com os migrantes, o intercâmbio cultural, como contributo de riqueza cultural, de fraternidade, partilha, que vá fazer face este preconceito, medo e xenofobia que se está a instalar.
Tem defendido que a igreja deve estar aberta a uma nova linguagem, no fundo, a uma nova forma de intervenção. É destas acções que fala?
É disto e de muita coisa. É da preocupação do Papa ir às periferias, humanas e existenciais, porque não são só geográficas, neste caso algumas até também o são. É sobretudo as periferias do sofrimento, da catástrofe, da indiferença em relação a todos estes problemas humanos. O fenómeno migratório e a pobreza a nível mundial, sobretudo o fosso entre os ricos e os pobres é um dos problemas dramáticos que a humanidade deste século XXI está a viver. Faz parte do próprio evangelho, a Igreja não pode ficar voltada para si mesma.
Naturalmente não se pode substituir às instituições do Estado, mas tem uma missão própria dentro da sociedade, de dar o exemplo do acolhimento. Por exemplo, quando se colocou o problema dos refugiados houve a plataforma cívica, em Portugal, que procurou a acção conjunta das várias organizações, umas não-governamentais, outras laicas, outras confessionais, mas foi uma acção de conjunto e procurou-se sensibilizar as diferentes dioceses.
Na diocese Leiria-Fátima recebeu-se na medida do possível. No santuário de Fátima tínhamos uma casa disponível preparada para receber uma família síria, para a qual arranjámos emprego dentro do próprio santuário. Ontem soube que já tinha saído. Foram para França, tinham lá familiares, mas estão lá sem emprego.
A Misericórdia recebeu na Marinha Grande uma família de refugiados, que também saiu para a Alemanha, e tem procurado dar trabalho a imigrantes, sobretudo ucranianos, há muitos nesta zona. As Irmãs Franciscanas Hospitaleiras do Imaculado Coração de Maria também prepararam uma casa para uma família, que está muito bem. Arranjaram-lhes emprego. Depois há uma outra, por conta da câmara da Batalha, mas não tenho informação sobre isso. Houve alguma mobilização. Às vezes também não há recursos, por exemplo, o santuário ofereceu a possibilidade de receber temporariamente bastantes refugiados. Não tínhamos casa para toda a gente, com as condições necessárias, mas havia a possibilidade de os receber até arranjarem a casa, mas isso não foi considerado.
O século XX foi o “século sem Deus”. O que está a ser o século XXI, para si?
O século sem Deus foi dos teorizadores da morte de Deus, sobretudo Marx, Nietzsche e Freud, os mestres do pensamento dominante, mas depois a ideologia caiu. Alguma coisa de positivo ficou, não sejamos maniqueus, dizendo que está tudo bem de um lado ou tudo mal do outro. Durante a atracção marxista, recordo-me, na minha juventude, que era até a grande alternativa ao cristianismo. Não podemos dizer que foi assim um século, sem mais. Foi dominante essa cultura, mas depois deixou uma decepção. Era a expressão das chamadas grandes narrativas de que o progresso seria ilimitado, a paz seria possível e a justiça se instauraria. Isso não aconteceu, sobretudo pelas duas grandes guerras mundiais que deitaram por terra essas promessas. Daí a chamada pós-modernidade que é, de certo modo, a rejeição da modernidade. Vem a atitude mais drástica, que é o niilismo.
Esse é o século XXI?
O niilismo é o vazio, o vazio interior, o vazio de ideias, de grandes causas, de compromissos, porque é a geração da indecisão. O século está a começar, não queria definir já que vai ser todo assim. É uma fase de mudança muito grande, é o que o Papa chama ‘mudança de época’, não é só época de mudanças. É uma mudança de época, um mundo novo que nasce e cujos contornos ainda não vemos definidos.
O pontificado do Papa Francisco é uma corrida contra o tempo de uma ‘mudança de época’, com tudo o que faz e diz?
O Papa Francisco fá-lo mais com gestos do que com palavras. Uma sua preocupação é uma igreja em saída, que vá ao encontro de todos, estabeleça pontes de diálogo com todos. Vivemos hoje numa sociedade muito dividida, na qual domina a cultura da indiferença, de quem não olha para o lado e, se olha, diz ‘não é comigo’. Domina a cultura do descarte daqueles que se pensa que são inúteis, não são produtivos, são um peso, são um fardo para a sociedade.
Para mim, a única figura de referência mundial para crentes e não crentes que luta contra esta onda é o Papa Francisco. É um homem de esperança e eu admiro isso: que um ancião seja o homem da esperança para as novas gerações. Eu também já sou da terceira idade. As grandes reformas da Igreja têm sido feitas pelos anciãos, gente que viveu uma vida, que é capaz de distinguir o essencial do secundário e do provisório, gente que deu um testemunho de vida, a quem ninguém pode dizer 'não sabes nada disto, não viveste', porque já o viveram. João XXIII, com 78 anos, foi eleito Papa e fez o concílio ecuménico do Vaticano II, um dom para a Igreja que se antecipou às mudanças que vieram logo de imediato e que estão a acontecer. Agora quando menos se esperava, o Papa Francisco veio lá de longe com a idade que tinha e trouxe uma lufada de ar fresco não apenas para a Igreja, mas para o mundo.
O que é ser um seguidor do Papa Francisco?
O Papa Francisco veio ajudar-nos a ler este mundo presente a uma luz evangélica e com outro tipo de cultura. O Ocidente preocupou-se muito com a elaboração de muitas ideias e até boas, mas depois no concreto fez pouco. O Papa Francisco veio da periferia e olhou para o centro a partir da periferia. O que ele diz é ‘uma coisa é olhar do centro para a periferia outra é da periferia para o centro’. Isso veio abrir-nos horizontes para os quais não estávamos sensibilizados.
Sentiu isso pessoalmente?
Senti, senti. Porque eu próprio me estava a deixar ficar fechado na cultura ocidental e também respirava um certo pessimismo e este Papa veio abrir um horizonte mundial, para olharmos para todos os lados. Por exemplo, ele privilegia as viagens às periferias e aos países periféricos para mostrar que o Ocidente e a Europa já não são o centro do mundo como até aqui.
Foi padre operário, no pós Vaticano II, num período da história em que a igreja foi para o mundo. Agora, quando o Papa Francisco diz que a igreja tem de voltar ao mundo, não é este o regresso do padre-operário ainda que num tempo diferente?
Sim, sim. É aquilo que o Papa diz do ‘pastor com cheiro a ovelha’, ou seja, que conhece a vida do povo, que conhece as pessoas, portanto, um padre que se distingue pela atitude de acolhimento, que acolhe a todos e os escuta, que ouve sem julgar imediatamente, que procura caminhar com as pessoas e não impor regras imediatas do crescimento, até chegar a descoberta da fé. É mais exigente do que antigamente, mas é mais desafiante. Nesse sentido será operário de outra maneira.
No meu tempo, era por causa de dizermos que o mundo operário se tinha afastado da Igreja e esta tinha de ir ao mundo operário e conhecê-lo. Foi essa a razão. Havia o movimento dos padres operários em França. Hoje essa dimensão já não é precisa, é estar no meio do seu povo e caminhar com ele de modo evangélico.
E o que vai ser o cardeal de Fátima?
Vai ser como os outros cardeais. Penso que o Papa quis fazer um dom, um presente a Fátima, nomeando-lhe um cardeal. Vi que saiu comovido, quando íamos no papamóvel, a cada passo dizia-me "tanta gente, tanta gente". Deve ter ficado surpreendido e aprendido que a mensagem de Fátima tem a ver com a história da humanidade. Não é uma coisa meramente privada para dentro da Igreja, é com a história da humanidade. Deve ter querido distinguir Fátima, nesse sentido. Não ponho também de parte que foi um acto de confiança pessoal, porque certamente se soubesse que eu era contrário à reforma da Igreja não me escolheria. Nesse sentido, ele sabe perfeitamente que tem um apoiante na reforma da Igreja.