“A história da selecção não começou na Madeira com Cristiano Ronaldo”

Carlos Queiroz está magoado por não ter sido cumprimentado pela maioria dos portugueses no fim da partida. Antes de regressar ao Irão disse ao PÚBLICO como está orgulhoso dos seus jogadores.

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Carlos Queiroz Reuters/LUCY NICHOLSON

A poucos instantes de abandonar a Rússia, Carlos Queiroz lamentou as críticas que colocaram em causa o seu patriotismo no final da partida frente a Portugal. Apontou o dedo à forma como o vídeoárbitro está a ser usado e criticou o modo como os árbitros se estão a desresponsabilizar das decisões difíceis, como a que ia valendo o cartão vermelho ao capitão português.

Dormiu bem esta noite, depois das emoções de segunda-feira?
Podia ter dormido melhor se tivéssemos conseguido a passagem à segunda fase. Ou não. Mas dormi com a consciência tranquila, orgulhoso do trabalho que fizemos, apesar de todas as limitações. O mais importante foi competir com honra e dignidade. Ninguém dava nada pela nossa selecção.

Sente que ficou muito perto?
Sim, a dois minutos do fim Portugal poderia ter estado fora se tivéssemos tido a felicidade de marcar aquele golo que falhámos. Termos estado até ao último minuto a discutir uma qualificação num grupo com Espanha e Portugal só faz com que estejamos orgulhosos.

Este é o maior feito futebolístico do Irão?
Sim, sem dúvida. E, sobretudo, porque vem num contexto cada vez mais adverso devido às sanções que o país enfrenta. Foi excelente e digno demonstrar que quando o trabalho assenta em certos valores e se acredita é sempre possível, mesmo com um grupo de jogadores que são, a maior parte deles, amadores. E acho que até podíamos ter estado melhores se tivéssemos cumprido o plano de preparação que tinha originalmente desenhado, mas as sanções e a falta de condições financeiras não o permitiu. Os meus jogadores estão de parabéns e merecem o respeito de todo o mundo.

Está contente com a exibição frente a Portugal?
Estou, fizemos um excelente trabalho. Bloqueámos a equipa portuguesa em todos os seus pontos fortes. Não ter a humildade de reconhecer o mérito da nossa exibição é que é realmente faltar ao respeito.

Mas Fernando Santos reconheceu-lhe o mérito no final do jogo…
Sim, mas alguns jogadores portugueses não o fizeram. E a típica imprensa portuguesa que desde 2010 cada vez que se cruza comigo insinua que eu sou menos português do que os outros. Ao contrário de alguns dos comentaristas que me criticaram depois da partida, eu não devo nada a ninguém. Nunca pedi dinheiro a presidentes dos clubes para pagar as minhas contas. Conheço-os a todos e conheço os presidentes que lhes davam dinheiro para eles falarem. E é por isso que alguns não gostam de mim. Sei como alguns pagam as suas contas. A verdade magoa. E quero deixar claro que não estou aqui a falar como o Carlos Queiroz adepto de Portugal, mas sim como profissional de futebol e como treinador do Irão.

Acha que os portugueses não entendem isso?
Convém a algumas pessoas não entenderem e levam isso para o campo do patriotismo ou do nacionalismo. Mas estou habituado a ser este homem que vive contra uma parte da nação e tem uma parte da nação contra si. É um estigma quase político que existe desde a África do Sul. Quando estou no banco defendo os interesses da minha equipa e quando algo está errado digo. Não se pode ser português e honesto?

E aconteceu muita coisa errada no jogo com Portugal?
Eu não critiquei a arbitragem na conferência de imprensa ao contrário do que foi dito. Nem falei dela. Falei apenas do sistema VAR [vídeoárbitro]. Quero saber como funciona, porque existem dúvidas. O que é que se está a passar? Quem é que arbitra o jogo? Há dúvidas que não são apenas minhas e que têm sido colocadas por todos os treinadores. O público também não sabe e tem de saber como é que este sistema ajuda o árbitro. Falei sobre isto com Fernando Santos na FIFA e todos nós tivemos dúvidas.

Quais são as suas dúvidas?
Quero saber quem está a arbitrar o jogo. Estes árbitros que vêm da Ásia ou de África não estão familiarizados com o VAR e não assumem o que é o seu papel fundamental, que é ter a responsabilidade durante a partida. Estão a fazer como Pilatos, a recorrer a este sistema para lavar as mãos da sua responsabilidade. E ninguém sabe quem é responsável do quê e para quê. O VAR não nasceu para provocar as situações que se têm passado neste Mundial. Tentei dizer isto antes da partida de Portugal. O VAR não foi criado para provocar mais problemas, mas para os resolver ou diminuir o erro humano e proteger a credibilidade do jogo. Tem de ser claro e óbvio e o público tem de saber o que se está a passar. Errar com o VAR é desumano.

E o VAR errou na análise do lance da suposta agressão de Cristiano Ronaldo a um jogador iraniano com o cotovelo?
Se o árbitro foi consultar o VAR e constatou que houve agressão não tinha outra alternativa se não expulsar. Mas isto não tem nada a ver com o Cristiano, podia ter sido com qualquer outro jogador. Nunca pensei vir a viver isto depois de 37 anos de futebol. Ou era cartão vermelho ou não era nada, ponto final. Eu até admito que não seja nada, mas só havia uma decisão inteligente do árbitro que era não sancionar. A punir não tem outra alternativa e tem de ter coragem de mostrar o vermelho. Assim assumiu uma meia decisão. Conduta violenta é cartão vermelho, não tem nada de enganar.

Acha que o árbitro não teve coragem para expulsar Ronaldo?
Absolutamente. Nem o árbitro nem ninguém. É claro e óbvio que o árbitro depois de ter sido pressionado pela equipa portuguesa não teve coragem. Mas não foi só isso. Logo a seguir o Cristiano interceptou uma bola com a mão no ar e não lhe é mostrado segundo amarelo. Houve ainda uma falta clara sobre o Taremi em que o William lhe faz uma ‘gravata’ por trás e não é assinalado penálti. O VAR não indicou, mas se fosse do outro lado?

Assinalou um penálti a favor do Irão…
O nosso penálti foi fácil de analisar e o árbitro quase não precisou de ir ao VAR.

Também necessitou do VAR para assinalar o penálti contra o Irão…
Depois de quanto tempo? Isto tem a ver com futebol. Eu fui e sou um dos maiores defensores do VAR, mas não é este. Os árbitros têm de ter carácter e coragem e exercerem a justiça de uma forma correcta. Vi muito detalhadamente o Portugal-Marrocos [segunda jornada] e não é possível o VAR não ter visto que o Pepe derrubou um adversário no lance que originou o golo português.

Mas também não viu ou não assinalou a falta de Diego Costa sobre Pepe que antecedeu o golo do empate no Portugal-Espanha (primeira ronda).
E está errado isso. É impossível não ver. Depois de dois anos de experiências e treinos com este sistema acharia natural que fossem explicadas as decisões aos treinadores e ao público, como acontece em outras modalidades. Em Portugal não conhecem as dificuldades económicas com que muitos iranianos estão a viver devido às sanções, mas eles encheram três estádios na Rússia. Merecem respeito e saber o que se está a passar dentro de campo. Como treinador do Irão tenho de dizer a verdade e sei que vai doer a algumas pessoas. O que não acho admissível é que quando dou a minha opinião apareça um conjunto de senhores que se sentem mais portugueses do que eu e me acusam de querer acertar algumas contas antigas.

O que disse ao ouvido do João Moutinho antes da entrada dele em campo?
É muito simples, disse o seguinte: ‘João ajuda-me a acalmar aquela malta lá dentro. Os meus jogadores não têm muita experiência, ajuda todos a terem calma’.

E o que conversou com Fernando Santos que parecia estar sentido consigo no final do jogo?
Teve a ver com o lance do penálti contra o Irão. Eu quis ver o lance na televisão e o árbitro ameaçou-me com a expulsão. Nesse momento deu-me um calor enorme e só me apeteceu ir embora. Saí para ir ver o que se tinha passado a uma câmara da FIFA no túnel de acesso ao relvado. Chamaram-me arruaceiro, mas estava apenas a defender os interesses da minha equipa. Se fosse ao contrário os portugueses teriam feito o mesmo.

Mas o que disseram um ao outro?
Fui abraçá-lo e dar-lhe os parabéns e ele manifestou que estava sentido. Expliquei-lhe que não teve nada a ver com ele e como amigos de sempre trocámos palavras de carinho a amizade um com o outro. Ele não tinha reparado no que tinha acontecido e tomou aquilo como uma questão pessoal, o que eu compreendo. É um incidente que entre amigos não tem nenhum significado nem nenhuma importância.

E ficou convencido com o penálti contra o Irão?
Não vou dizer que não foi, mas gostaria de saber a opinião do VAR se fosse do outro lado. Eu tenho a minha opinião sobre o lance, mas não vou comentar.

A maior parte dos jogadores portugueses não quiseram cumprimentá-lo no final e o Ricardo Quaresma disse mesmo que se tivesse de falar sobre si iria ficar ali muitas horas…
O Quaresma ainda vai ter de jogar pela minha selecção e não vou tecer muitos comentários. Mas se todos os treinadores que ele teve falassem dele ficariam alguns anos a falar. Todos, desde o Sporting ao FC Porto. É melhor ficarmos por aqui. Se tiver de dizer alguma coisa sobre mim, que tenha coragem e diga agora. Dizer que eu não respeitei os jogadores portugueses… Como é que eu não os respeitei? Mesmo assim fiquei feliz por três jogadores portugueses me terem cumprimentado no final, o Adrien, o Bruno Alves e o Beto.

Tentou desestabilizar os jogadores portugueses com as suas reacções durante a partida?
Porque é que eu desestabilizei a equipa? Na minha conferência de imprensa de antecipação do jogo limitei-me a dizer que Portugal não é só um candidato, é favorito a ganhar o Mundial. Ser campeão da Europa eleva a auto-estima dos jogadores. Não é uma exigência, é uma obrigação. Temos de assumir as nossas responsabilidades. Elogiei a equipa portuguesa, não a desestabilizei.

As suas reacções no banco no jogo com a Espanha não foram iguais. Porquê?
Não foi um jogo, nem de perto nem de longe, igual em termos de competitividade. O que custa a admitir é que frente a Portugal fizemos um jogo extremamente competitivo, que dominámos mais tempo do que fomos capazes de dominar a Espanha. Fomos uma equipa competente e, tirando o lance de genialidade do Quaresma [do golo português], Portugal não criou grande perigo. Eu digo coisas que muitos portugueses gostariam de dizer e não dizem. Pessoalmente, não me identifico com certas coisas que se passam na equipa portuguesa.

Por exemplo?
Não cumprimentar um treinador que serviu 12 anos nas selecções portuguesas. Conquistei títulos europeus e mundiais, com reformas e ideias. A história da Federação Portuguesa de Futebol não começou na ilha da Madeira com Cristiano Ronaldo. Começou muito antes. E os valores que eu recebi do José Augusto, do Simões, do Eusébio, do Torres, do Jaime Graça, do Humberto Coelho, do Toni não foram estes. Não estou a dizer que estão errados, apenas que não são os meus e não são os de muita gente. Já tive a minha conta na África do Sul [Mundial de 2010, quando orientava a selecção nacional]. Algumas das pessoas que tentaram destruir na altura a minha vida pessoal e profissional hoje até são arguidos e alguns estão na cadeia ou a ir para lá.

Quer dizer os nomes?
Não, eles sabem quem são. Isto vai ferir a consciência de alguns. Dos que se calaram. Eles sabem o que se passou na federação, o que aconteceu no caso do doping, no caso do Nani. Alguma imprensa acusou-me de estar a esconder um caso de doping porque era um jogador do Manchester United. Foi uma vergonha. Não tenho contas a ajustar com ninguém, mas não tenho é má memória.

Está orgulhoso dos seus jogadores?
Não podia estar mais orgulhoso. Encontrei-os tristes e desapontados no final do jogo. Tinham consciência do que fizeram e de terem estado com a qualificação na mão. Travaram alguns dos melhores jogadores do mundo. Agradeci-lhes por me terem trazido até aqui. Fizemos três encontros épicos. E fiquei também triste por alguns jogadores portugueses terem recusado trocar a camisola com os iranianos. Reafirmo: não foi esta herança e valores que eu recebi, de respeito, humildade, ética e tolerância. Não passam de moda nem que se seja o maior do mundo.

Como treinador que análise faz da selecção portuguesa?
Sinceramente é ainda muito precipitado fazer análises durante as fases de grupos, que é completamente diferente da fase a eliminar. Do tudo ou nada, quando entra em campo o verdadeiro espírito de Campeonato do Mundo.

A exibição de Ronaldo frente à Espanha surpreendeu-o?
Quem ficou surpreendido foram os espanhóis. Ainda bem que isso aconteceu, porque me permitiu estudar o seu jogo e anulá-lo completamente na partida contra nós.

A sua relação com Ronaldo está sanada depois da desavença no Mundial da África do Sul?
Por mim está, não tenho choques com ninguém. Tem de lhe perguntar a ele. A minha carreira e a dele são muito maiores do que esse incidente que se passou na África do Sul.

Que balanço faz deste Mundial até ao momento?
Está a correr tudo muito bem e a ser um campeonato extremamente competitivo. Uma nota: a Europa está cada vez mais distante dos outros continentes.

Vai regressar agora ao Irão?
Sim, vou ter de dar a cara. O nosso objectivo era qualificarmo-nos para a fase seguinte mas não conseguimos. Lamento e tenho de assumir as minhas responsabilidades.

Depois de oito anos à frente da selecção do Irão pensa continuar?
Antes desta competição tinha um desejo enorme de tentar a quinta qualificação para um mundial. Mas desceu um vazio em mim desde o último jogo, já não é a mesma coisa. O futebol está a tornar-se demasiado em show off. Os jogadores estão mais tempo nas publicidades e entrevistas do que dentro do campo. Acho que estou a perder um pouco o comboio. Ainda não tomei uma decisão sobre o meu futuro, mas tenho um convite da federação iraniana para continuar por mais seis meses, até à Taça da Ásia.

Tem mau perder?
Tenho de admitir que sim, é um defeito meu. Quem diz isso sobre mim tem toda a razão. A única pessoa que está proibida lá em casa de jogar a qualquer coisa com os netos ou os filhos sou eu. Seja às cartas ou a qualquer coisa, tenho de ganhar sempre nem que tenha de trocar as cartas [risos]. Perder não é comigo e tenho orgulho disso. Detesto ser um perdedor simpático, não nasci para isso nem para ser agradável aos outros. Tenho uma azia impressionante quando perco.

Como está a seguir a crise no Sporting?
À distância. É uma situação desagradável, ver um clube que eu servi, com uma história tão grande, cair numa situação destas. Mas para mim não é surpreendente. Trabalhei lá dois anos e sete meses e não me surpreende. Não pela gravidade da situação, mas pelo espírito que vi no passado. Muitas vezes dizia que o clube ficava mais preocupado com o vizinho da Segunda Circular, de forma obsessiva, do que consigo próprio. Com o seu próprio caminho e valores. Cometeram-se erros políticos e estratégicos que eram para mim, como treinador e simpatizante, incompreensíveis.

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