Eleito à primeira volta, Erdogan vai dispor de um poder quase absoluto
Mais importante que a reeleição do Presidente é a entrada em vigor do texto constitucional de 2017, que consagra uma “mudança de regime”.
O Presidente Recep Tayyip Erdogan foi reeleito nas eleições de domingo, coroando a sua tentativa de conquista de um poder quase absoluto. Obteve 52,6% dos votos contra 31% do seu principal competidor, Muharrem Ince, do Partido Republicano do Povo (CHP, esquerda laica) e 8,4% de Selahattin Demirtas (Partido Democrático do Povo (HDP, pró-curdo) e 7,3 da candidata nacionalista Meral Aksener (Partido Bom, IYI).
Mas o aspecto mais relevante destas eleições antecipadas é a imediata entrada em vigor da revisão constitucional de 2017, uma verdadeira “mudança de regime” que consagra um poder altamente concentrado e personalizado, o que estava previsto apenas para o próximo ano.
Ince reconheceu a derrota na noite de domingo. Denunciou irregularidades na votação. Mas considerou que a margem de vitória de Erdogan não pode ser justificada pelas fraudes. Os observadores da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) confirmaram as irregularidades e assinalaram que o voto não foi “equitativo” na medida em que o Estado controla 90% dos meios de informação: Erdogan dispôs de 180 horas nas televisões contra 37 de Ince. Ao abrigo do “estado de urgência”, estão detidas cerca de 160 mil pessoas.
O Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, de Erdogan) permanece dominante mas perdeu votos, passando de 49% para 42,5 e de 316 deputados para 295, longe da maioria parlamentar absoluta pedida pelo seu líder. Mas constituirá uma maioria com o Partido do Movimento Nacionalista (MHP, extrema-direita nacionalista) que obteve 48 mandatos. Os principais partidos da oposição, designadamente o CHP e o IYI, tinham-se coligado numa Frente Nacional para tentar retirar a maioria ao AKP.
A votação do HDP foi uma relativa surpresa, pois passa de novo a barreira dos 10% e confirma o seu enraizamento no eleitorado curdo e em correntes liberais das grandes cidades. Note-se que o seu líder, Demirtas, teve de fazer a campanha a partir da prisão.
A “mudança de regime”
A Turquia tinha um regime parlamentarista, embora largamente esvaziado desde a eleição presidencial de Erdogan, em 2014, que não esperou pela revisão constitucional para concentrar poderes. O “golpe de estado” de 2016, abriu uma “avenida” para o poder pessoal e para a eliminação de adversários, com destaque para o movimento do sufi Fethullah Gülen. Não por acaso, o Presidente qualificou o golpe como um “presente do céu”.
Que muda agora? Desaparece o cargo de primeiro-ministro. O Presidente escolhe os ministros sem prestar contas à Grande Assembleia Nacional (parlamento). Pode governar através de decretos-lei, também sem ouvir os deputados. Nomeia os altos cargos da magistratura, o que anula a independência da Justiça. Deixa de haver separação dos poderes e contrapesos constitucionais. Os meios empresariais temem o fim da independência do banco central.
Erdogan será simultaneamente chefe de Estado e do governo, comandante das Forças Armadas e presidente do AKP. Os media já foram submetidos. E o “estado de emergência” facilita o controlo da opinião.
Erdogan confirmou nestas eleições a sua força eleitoral. O partido desce, acusando desgaste, ele não. Utiliza bem a falta de alternativas políticas credíveis e o temor de que a sua queda lance o país numa perigosa deriva. Ele domina, sem rival, a cena política turca desde 2002. A grande maioria dos turcos reconhece que deve ao AKP e a Erdogan uma era de prosperidade e um engrandecimento do papel da Turquia no mundo.
Vaga nacionalista
Se olharmos a campanha eleitoral e os resultados é inevitável reconhecer a vaga de nacionalismo que marca a Turquia de hoje. A maioria dos que se tentam opor à concentração e à personalização do poder, fazem-no em plataformas nacionalistas. Meral Aksener vem de uma cisão do MHP que, hoje, se rendeu a Erdogan. A questão curda e a guerra síria, os desaires políticos de Ancara durante e após as “primaveras árabes”, o ressentimento perante o fiasco da integração europeia alimentam esse nacionalismo. O maior beneficiário é o hiper-presidente.
De resto, uma coisa é votar Erdogan outra é partilhar a sua concepção de democracia, o que os inquéritos de opinião confirmam. A sociedade turca, mais plural do que pode parecer, tem tido capacidade de resistência perante a corrosão das liberdades. A “mudança de regime” é um novo desafio.