Ainda não são livres, mas agora as sauditas já podem conduzir
Quem mais lutou por este dia não pode festejar a chegada das mulheres da Arábia Saudita ao volante. Num regime autoritário e patriarcal, onde elas são “legalmente menores”, só o tempo trará a igualdade.
Quase todas as mulheres que deveriam ser ouvidas para este texto estão detidas ou foram avisadas para não falarem publicamente sobre o dia histórico em que as sauditas ganham um direito comum a todas as mulheres no mundo: conduzir. Um direito que várias activistas sofreram para tornar possível desde o primeiro protesto, em 1990, quando 47 sauditas conduziram no reino.
É um dia feliz, mas não é o fim da segregação das mulheres na Arábia Saudita. Nem do feroz autoritarismo com que o reino é governado, agora às mãos do jovem príncipe herdeiro, Mohammad bin Salman (MBS, como é tratado), que surpreendeu ao prometer reformas e aberturas sem fim.
No que respeita às mulheres, desde que MBS assumiu um poder que nunca nenhum monarca teve, ao longo dos últimos três anos, deixaram de precisar de autorização do seu “guardião” masculino para entrar na universidade ou candidatar-se a alguns empregos.
Ao mesmo tempo, a polícia da moralidade (Brigadas da Promoção da Virtude e Prevenção do Vício) recebeu ordens para não aplicar com tanto rigor as normas que as obrigam a vestir compridas abayas negras (túnicas) e a cobrir os cabelos com hijabs (lenços). Entretanto, começaram a ser autorizados concertos, reabriram os primeiros cinemas em décadas e as mulheres foram admitidas no estádio Cidade Desportiva Rei Salman, em Riad, para assistir a várias partidas de futebol numa zona própria.
Hana al-Khamri, escritora e analista, que viveu toda a vida na Arábia Saudita e trabalhou “como jornalista durante cinco anos num escritório segregado dos colegas”, lamenta que as activistas que mais se bateram por este direito não o possam festejar. “É uma mensagem do sistema autoritário patriarcal saudita, as activistas de direitos humanos e as feministas não devem aspirar a mais mudanças nem desafiar as normas”, diz sobre as 17 mulheres e homens (advogados quase todos) detidos a 15 de Maio – já foram libertadas oito pessoas, mas pelo menos quatro mulheres e cinco homens continuam atrás das grades.
“No mesmo mês do decreto a pôr fim à proibição de conduzir, o rei ordenou às activistas que não comentassem temas de direitos e ficassem em silêncio”, confirma Khamri, que em breve lançará o livro Female Journalist in Gender Apartheid Saudi Arabia. Khamri recorda as 47 “académicas, médicas, empresárias, funcionárias públicas e estudantes” do primeiro protesto, em Riad: “Estas mulheres corajosas foram detidas, viram os passaportes confiscados. Algumas perderam o emprego, outras foram expulsas da escola, todas enfrentaram campanhas de difamação”.
De novo, em 2018
O mesmo acontece agora. Mulheres como Loujain al-Hathloul, Aziza al-Yousef e Eman al-Najfan, que, para além de combater a proibição de conduzir, assinaram uma petição a pedir a abolição do sistema de guardiões, em 2016. São acusadas de ameaçar a segurança do Estado através de “contactos com entidades externas para minar a estabilidade e o tecido social do país”. Chamam-lhes “as agentes das embaixadas”. A Human Rights Watch fala numa “perturbadora campanha de difamação”.
Alguns justificam estas detenções com a necessidade de MBS apaziguar os religiosos wahabitas (seguidores de uma versão ortodoxa e literal do islão). Mas a mensagem não deixa de ser algo como “isto, a liberdade para conduzir, fomos nós, os homens, que vos deram”.
Khamri concorda. “Mostra a misoginia do sistema. Nada ameaça a existência do regime autoritário saudita tanto como permitir que as pessoas acreditem que a mudança vem de baixo e acontece graças às mulheres que por ela lutam desde 1990”, explica, numa troca de emails. “O regime teme que se os sauditas acreditarem nisso acabe por enfrentar uma revolução a exigir uma monarquia constitucional, democracia e representação política”.
Mas é óbvio que a autorização para guiar “acontece graças a estas mulheres que desafiaram as normas e preparam a sociedade para ir aceitando as mudanças”. Depois de 1990 vieram os protestos de 2009, 2011 e 2013, sempre seguidos de perseguições. “E, de novo, em 2018, proeminentes activistas dos direitos das mulheres são mantidas ilegalmente sob detenção”, lamenta Khamri.
Em benefício de todos
Hatoon al-Fassi, professora de História das Mulheres na Universidade Rei Saud e colunista, é uma conhecida investigadora que se especializou no pré-islâmico reino Nabateu, onde as mulheres beneficiavam de mais liberdades e direitos do que as sauditas. Esteve envolvida nas campanhas para dar às mulheres o direito a votar e a ser eleitas nas eleições municipais que se realizam desde 2005.
O anúncio de que elas poderiam participar chegou, finalmente, em 2011, mas só foi levado à prática em 2015. Fassi tentou, sem sucesso, organizar sessões de treino e formação política para mulheres. É referida em diferentes notícias como uma das avisadas para não festejar o direito a conduzir, algo que não comenta.
“Acredito que MBS é um pragmático, para seu benefício e para conveniência das sauditas”, diz Hatoon. “Quer desenvolver o país economicamente e há recursos humanos muito qualificados entre as mulheres. Pesou os prós e os contras de dar poder às mulheres para criar uma alternativa aos 11 milhões de estrangeiros [que trabalham] no país”, analisa a professora.
Ora “toda a gente acabou por ganhar, ao mesmo tempo que se melhorava a imagem da Arábia Saudita, ele é esperto e sabe usar a questão das mulheres em benefício de todos”. Mas “parece haver um controlo na atribuição de crédito pela mudança”.
A mãe presa em casa
Khamri é mais directa a avaliar o príncipe que anuncia aberturas internas enquanto se envolve em disputas como o bloqueio ao Qatar ou a sangrenta guerra do Iémen. “MBS não é feminista nem crente na igualdade de géneros. Segundo os serviços secretos dos EUA, pôs a própria mãe em prisão domiciliária, com medo que ela se opusesse às suas acções unilaterais”, recorda a analista.
As aberturas resultam do seu pragmatismo. “O regime enfrenta uma pressão económica significativa desde 2014, exacerbada por ter metade da população inactiva, e entre as mulheres o desemprego é muito alto. Remover obstáculos, como a proibição de conduzir, é uma tentativa para aumentar a produtividade, encorajando a participação das mulheres na força de trabalho”, descreve. “O regime só está interessado em dar poderes às mulheres na medida em que isso servir a sua agenda de sobrevivência”.
Mais: “MBS não é um reformista – como parece externamente –, pelo contrário, é o rosto do Estado neototalitário”.
Os eternos guardiões
A maioria das sauditas sabe que ainda falta quase tudo, mas as que já obtiveram carta de condução (com aulas seis vezes mais caras do que para os homens) e têm carro vão pôr-se à estrada.
Entre o que permanece fora do alcance conta-se a interacção com homens que não sejam familiares (há áreas exclusivas para elas nos transportes públicos, praias, ou parques, e portas separadas nos edifícios públicos ou bancos); a possibilidade de nadar em público (só em ginásios privados e segregados); a participação nos desportos, que nos últimos anos começou a ser autorizada em algumas modalidades; ou o simples acto de experimentar roupa numa loja, entrar num cemitério ou ler uma revista de moda.
Mais importante do que tudo isto é o sistema de guardiões, descrito pela Human Rights Watch como “o mais significativo impedimento para a obtenção de direitos por parte das sauditas”. Todas as mulheres são vistas como tendo um wali masculino, um guardião oficial que costuma ser o pai, um irmão, tio ou marido. Não está em nenhuma lei, mas os serviços do Governo, os tribunais ou os comuns sauditas agem de acordo com o sistema.
Na prática, uma mulher precisa da permissão do seu wali para viajar, assinar contratos, obter um passaporte, casar ou divorciar-se. Por causa disso, é quase impossível a uma saudita apresentar uma queixa por violência doméstica, já que a polícia insiste na autorização do guardião (mesmo se for este o atacante).
“O rei recusou receber o abaixo-assinado organizado por Aziza al-Yousef, foi-lhe dito que voltasse para casa e o enviasse por Fax”, conta Khamri, a propósito da petição a pedir o fim deste sistema. “Isto mostra como os direitos só surgem quando servem os interesses do regime. Neste momento, com as detenções, não vejo nenhuma indicação nesse sentido.” E assim as mulheres permanecem “legalmente menores”.
A professora Fassi está moderadamente optimista. “Para obter a carta de condução não foi preciso a autorização dos guardiões, o que é bastante significativo”, diz. “Mas ainda há muitos espaços por preencher e questões por solucionar. Acredito que o fim do sistema de guardiões é inevitável, é só uma questão de tempo”.