“Quando tem que se ir à luta, eu vou. Não tenho medo”
Num protesto raro, trabalhadores da limpeza foram para a rua exigir melhores condições. Greve foi preparada durante anos pelo sindicato. Duas empresas já foram obrigadas pelo tribunal a pagar 500 mil euros por incumprimento de contrato colectivo. Arménio Carlos, da CGTP diz: “É um grande exemplo de coragem. O país só se desenvolve se estas mulheres e homens forem valorizados.”
Poucas vezes as ruas de Lisboa terão sido pisadas por tantos trabalhadores da limpeza, de toda a parte do país, em protesto como nesta sexta-feira à tarde. Uma enorme massa de gente, sobretudo mulheres, vestidas com fardas, empunhando bandeiras com palavras de protesto, esfregonas e luvas de borracha desceu a Avenida da Liberdade em direcção ao Conde Redondo: “Patrão, escuta, nós estamos em luta!” ou “Queremos os nossos direitos”.
O Marquês de Pombal encheu-se de batas azuis claras, batas azuis escuras, batas pretas, coletes amarelos no caso de quem estava a fazer piquete e muitos apitos. O Sindicato dos Trabalhadores de Serviços de Portaria, Vigilância, Limpeza, Domésticas e Actividades Diversas (Stad) – que organizou o protesto – diz que foi a maior manifestação de trabalhadores da limpeza em 40 anos.
Maria Rodrigues Lopes empunha a bandeira vermelha do Stad e não hesita: “Eu vou à luta sempre. Quando tem que se ir à luta eu vou, não tenho medo”, diz esta mulher de origem cabo-verdiana, há 20 anos a trabalhar na limpeza no Centro Comercial Oeiras Parque, mas agora contratada por uma empresa externa, uma das várias que já passou por ali. “Vou discutir os meus direitos”, afirma a delegada sindical que tem recrutado para o Stad vários colegas.
Ganha 565 euros, com horário repartido: das 6h às 10h e das 12h as 15h. “Tínhamos horário seguido mas os patrões reduziram as horas para fazer o mesmo trabalho”, acusa. Ao seu lado caminha um dos poucos homens, Carlos Almeida. Trabalhou na construção durante anos. “Por oito minutos atrasado descontam no ordenado”, lamenta.
Sem tradição de protesto
Sem carreira profissional, com uma massa de trabalhadores estimada em 40 mil e maioritariamente composta por mulheres, 70% delas empregadas a tempo parcial, segundo o Stad, esta é uma classe trabalhadora que não tem tradição de ir protestar para a rua, muito por causa da precaridade dos seus empregos, como explica Vivalda Silva, dirigente sindical.
Aliás, por isso esta é uma greve pensada há muitos anos: “No período da troika foi muito difícil porque o medo instalou-se, tentámos e não conseguimos. As coisas começam a melhorar e vimos que era necessário lutar”, prossegue.
Por outro lado, as empresas cortaram o número de trabalhadores, e “os mesmos serviços estão a ser feitos com menos pessoas, em prejuízo da própria limpeza” – é o caso dos hospitais, lamenta. “O fim da crise não levou a que o número de trabalhadores crescesse, nem a que as condições melhorassem. Mas sabemos que o sector dá lucro às empresas, porque quando há concursos públicos são sete cães a um osso.”
Neste momento, há cerca de 150 empresas de limpeza industrial, calcula, um sector que a sindicalista diz estar a crescer. “Quaisquer cinco mil euros chegam para abrir uma empresa de limpeza, que nem precisa de alvará.”
Os incumprimentos com os trabalhadores são vários, acusa esta trabalhadora da limpeza dos aviões do Aeroporto de Lisboa: as empresas pagam as horas nocturnas com apenas 25% mais do valor pago no horário diurno, quando deveria ser de 30% mais para o horário entre as 20h e as 24h e entre as 5h e as 7h da manhã, e de 50% mais para o horário entre as 0h e as 5h. Também não pagam os feriados, diz, e não respeitam o descanso obrigatório ao domingo.
O salário médio dos trabalhadores de limpeza ronda os 580 euros brutos, e o subsídio de alimentação é de 1,80 euros diários. O Stad quer subir o salário para os 600 euros e o subsídio de alimentação para 5 euros. Há trabalhadoras que dizem que se não forem sindicalizadas estas empresas não lhes pagam sequer os subsídios de férias. “Está a ser muito difícil porque as pessoas sentem que estão a ser mal tratadas. Vamos exigir dignidade, respeito e justiça”, comenta.
Estas são trabalhadoras que se debatem ainda com o facto de as empresas nas quais fazem limpeza não serem as mesmas que lhes pagam o ordenado, ou seja, são assalariadas de uma prestadora de serviços que tem contratos com instituições públicas, aeroportos, hospitais e centros de saúde, carris, comboios e empresas.
Empresas pagam 500 mil euros a trabalhadores
A chegada às ruas surge depois de o Stad decretar uma greve nacional de 24 horas desde a madrugada de sexta-feira. O grande objectivo foi pressionar a associação patronal, Associação Portuguesa de Facility Services (APFS), a rever o contrato colectivo de trabalho, algo que não é feito desde 2004.
O Stad acusa a APFS de se ter recusado a negociar e a boicotar as conversações para fazer caducar o contrato colectivo de trabalho. A APFS defende-se dizendo que o contrato colectivo está caducado e acusa o Stad de ter abandonado as negociações. “A pretensão do Stad de renovar uma convenção caducada é, por isso, juridicamente inviável”, diz a associação, acrescentando estar “inteiramente disponível para negociar uma nova convenção, logo após a publicação do aviso de caducidade da velha convenção de 2004”, referiu em comunicado.
Mas os tribunais têm dado razão ao Stad. Ainda recentemente, Maria Lopes foi a tribunal e conseguiu que uma das empresas lhe devolvesse cerca de 290 euros por não pagar uma percentagem do dia de Natal durante três anos.
Não foi a única. Em 2017 duas empresas de limpeza, a Safira e a ISS, foram obrigadas a pagar quase 500 mil euros a vários trabalhadores que os levaram ao tribunal por incumprimento de cláusulas que estão no contrato colectivo de trabalho, diz Vivalda Silva. E mais virão, acredita. “Ganhámos sempre.” Só a empresa ISS, no ano passado, pagou a actualização do subsídio de turno de 25 trabalhadores no Aeroporto de Lisboa – e teve que manter essa actualização, acrescenta a sindicalista.
Contactada pelo PÚBLICO, a empresa Safira remeteu qualquer comentário para a Associação Portuguesa de Facility Services (APFS) – que apenas fala do acordo colectivo – e não foi possível chegar ao contacto com a ISS até à hora do fecho desta edição.
"Sem vocês este país não funcionava"
Para algumas pessoas no protesto, estar na rua tem como consequência não receber o dia. “Não vai fazer diferença”, diz Maria da Conceição Cristóvão, convicta da importância do momento. Como em poucas profissões, esta é uma área em que há uma sobre-representação de trabalhadores negros, muitos deles imigrantes. “É um sector onde as empresas se aproveitam da imigração, da falta de trabalho, de tudo e mais alguma coisa”, acusa.
Por exemplo, ela está há mais anos na área por isso tem um contrato em que trabalha quatro dias e tem dois de descanso, com folgas rotativas, recebe subsídio de turno, subsídio de passe e o ordenado mínimo de 580 euros. Mas muita gente não recebe o mesmo: “Não concordamos com esta diferenciação.”
É ela quem diz que “há muita discriminação”, “não entre nós”, mas perante os chefes. “Há vários sectores e zonas de trabalho, há pisos melhores e outros piores, e são sempre as mesmas a ir para os piores.” Quem vai para os piores? “Somos nós, eu sou uma delas”, diz Maria Leite. “Eu também”, acrescenta Clarice Soares com 28 anos, há apenas um ano nesta área.
Maria da Conceição Cristóvão confirma: “Elas estão piores que nós. Queremos direitos iguais para trabalho igual e salário igual.” Há palmas e apupos das colegas à volta.
Já depois de descer a Avenida da Liberdade, no palco improvisado em frente à associação patronal, o líder da CGTP Arménio Carlos diz: “Sem vocês este país não funcionava.”
Ao PÚBLICO, minutos antes, tinha comentado que esta manifestação “afirma a dignidade destas trabalhadoras que têm sido exploradas ao longo dos anos”. E acrescentava: “Este é o melhor exemplo que se pode dar a uma associação patronal que continua de costas voltadas para a negociação. É um grande exemplo de quem está descontente, de quem está indignado e, acima de tudo, é um grande exemplo de coragem porque o país só se desenvolve se estas mulheres e homens forem valorizados.”
Chega Vivalda Silva, rouca, e visivelmente feliz abraça as outras colegas. “É a maior manifestação de sempre. A última vez, em 2009, conseguimos juntar umas 500 pessoas, mas desta vez estão muito mais.” A sindicalista diz que não pode ainda fornecer números de adesão à greve e remete para daqui a uns dias a contagem final.
Quis entregar uma moção à associação. Apesar de ter conseguido entrar no prédio, ninguém lhes abriu a porta, conta Vivalda Silva à audiência. Ouve-se um apupo geral. “Não nos respeitam.” Do outro lado, os “camaradas” gritam: “Gatunos, gatunos.” O Stad deixa o compromisso de que se a associação patronal não renegociar o contrato voltará às ruas.