EUA: o drama das crianças na fronteira pelo olhar de uma portuguesa que por lá andou
A porta foi aberta por Obama e escancarada por Trump. É certo que o recuo do Presidente americano, que promete não separar as crianças dos pais, é “muito importante”. Mas não chega, diz Lisa Matos, que já trabalhou naquela fronteira e viu coisas que não pode esquecer. “As pessoas fogem porque não têm outra escolha”
Tinha regressado a Portugal há coisa de quatro meses quando o convite do investigador norte-americano Allen Keller surgiu. Em McAllen, no Texas, um grupo de investigadores ia iniciar um estudo com o carimbo da New York University que tinha como objectivo monitorizar as entradas e perceber as motivações de quem cruzava a fronteira sul dos Estados Unidos da América. E Lisa Matos — portuguesa com mais de 12 anos de experiência a acolher, reabilitar e integrar populações refugiadas em solo luso e norte-americano — estava lá. Era Agosto de 2014. E Lisa pisava a mesma geografia onde milhares de crianças têm sido separadas dos pais ao abrigo da política de “tolerância zero” de Donald Trump. Esta quarta-feira, o presidente americano assinou um decreto que garante que pais e filhos ficam detidos no mesmo lugar e por tempo indeterminado, embora não ponha fim à detenção de famílias. Trump diz querer manter as famílias unidas ao mesmo tempo que garante uma "segurança muito forte" — mas isso parece ser uma tarefa quase impossível. O que se passa, afinal, na fronteira e o que leva milhares de pessoas a arriscar tudo apesar dos obstáculos?
Lisa Matos trabalhou muito tempo com requerentes de asilo e vítimas de tortura. Conhece demasiado bem um sem número de histórias que soariam pouco verosímeis a qualquer ficção. Talvez por isso, as imagens divulgadas nos últimos dias, de crianças sozinhas mantidas em gaiolas, a tenham chocado — mas não a surpreenderam totalmente. “Não vi gaiolas [em 2014]. Não sei se havia, mas não me custa acreditar que já existissem”, disse ao P3 numa entrevista telefónica. “Não tenho ilusões”, concede, para logo de seguida relatar as “condições miseráveis” narradas pelos migrantes com quem trabalhou: “As descrições já eram parecidas.”
Nos centros de detenção visitados por Lisa Matos não havia crianças, mas a separação de famílias era já uma realidade: “O problema não é novo”, assegura. Foi com um “decreto horrível” de Obama que a história começou. Para dissuadir a passagem da fronteira, com o número de entradas a “aumentar exponencialmente”, o ex-presidente norte-americano sentenciou em 2014 que as famílias ficariam detidas em centros de detenção familiar. E em 2015, o número decrescia efectivamente — não só por causa da lei mas também porque parte das pessoas eram travadas na fronteira do México, com o programa Frontera Segura. Algo quase impossível nos dias de hoje, tendo em conta as tensas relações entre os dois países. “Os EUA estão sozinhos nesta luta”, diz Lisa, actualmente em Lisboa a completar um doutoramento em Psicologia Clínica e a prestar assistência técnica a organizações governamentais e não-governamentais portuguesas e norte-americanas.
Em McAllen, a equipa que Lisa Matos integrou entrevistou pessoas maioritariamente oriundas dos países do triângulo norte — Honduras, Guatemala e El Salvador. Dos 234 participantes, 191 (83%) citavam a violência como razão para abandonar o seu país, 119 (69%) não tinham comunicado as situações de violência à polícia por medo de retaliação dos gangues e 204 (90%) diziam ter medo de voltar ao país de origem. E — muito importante — 70% cumpriam os requisitos necessários para requerer asilo nos EUA, sobretudo por serem vítimas de violência de gangues e violência doméstica. Precisamente as duas categorias que o secretário da Justiça dos EUA, o attorney general Jeff Sessions, “decretou na semana passada não mais serem meritórias de protecção”, explica Lisa. “Isso é um reversão enorme."
Uma mãe em fuga com o filho de quatro anos
Algumas das pessoas que cruzavam a fronteira, recorda Lisa Matos, não sabiam sequer explicar a situação em que estavam. Como uma mãe que viajava com o filho de cerca de quatro anos. Ao ser questionada sobre as razões do abandono do seu país, a senhora respondia-lhe com frases vagas sobre a instabilidade da sua vida. E só quando lhe perguntaram por que razão o menino tinha uma ligadura no braço ela contou a história toda: o filho tinha sido baleado quando a mãe tentou, sem sucesso, defender o irmão mais novo dos gangues locais. O filho mais velho foi levado, ela fugiu com o mais novo.
São relatos habituais. Nas conversas com estas pessoas, os gangues eram quase sempre citados. “Recrutam meninos e levam meninas para serem namoradas dos membros dos gangues.” Lisa Matos percebeu que “a violência é tão sistemática e a expectativa de violações é tão elevada que as mulheres tomam contraceptivos por causa disso”, relata incomodada. Aconteceu também testemunhar separações quando os adultos não conseguiam provar a relação familiar com as crianças que com eles viajavam — como uma mãe que dizia estar com dois filhos e uma sobrinha mas não pôde comprová-lo. E ter conhecimento do final trágico de um menino que foi deportado e acabou morto pelo gangue de quem fugia. Nunca será demais dizer: “As pessoas fogem porque não têm outra escolha”, sublinha Lisa Matos.
Lisa Matos nunca passou para o lado mexicano, mas não hesita em resumir o que se passa do lado de lá: “As cidades da fronteira são cidades de tráfico humano e de droga.” Do lado americano, havia com frequência manifestações de grupos radicais. Mas, ainda que “a generalidade dos americanos queira uma política de controlo das fronteiras mais forte”, Lisa viu “uma grande solidariedade” naquelas cidades junto ao México. “Havia até gente que tirava férias para ajudar.”
O decreto de Trump, que continuará a deter famílias mas garante que as deixará juntas, foi “muito importante”, assinala Lisa Matos, sublinhando que aquilo que se estava a passar caía no “conceito de tortura”. Mas não é suficiente. Repare-se que aquilo que se considerava inadmissível na era Obama é agora descrito como um mal menor, diz: “Este ser o novo normal é preocupante”, escreveu num e-mail com alguns acrescentos à entrevista telefónica.
Há alguns sinais mais positivos — como o facto de os governadores terem recusado o envio de tropas para a fronteira —, mas ainda muito por fazer. Neste momento, explica, os adultos e as crianças estão sob custódia de agências federais diferentes (Department of Homeland Security e Department of Health and Human Services) que não comunicam entre si. Resultado? “Temos conhecimento de adultos que entretanto foram deportados e as crianças ficaram nos EUA”, diz a portuguesa que apesar de estar em Lisboa continua a acompanhar a situação americana. E, “na prática, são as organizações no terreno e não as agências federais que têm de tentar localizar e reunir adultos e crianças, que frequentemente estão em estados diferentes na imensidão daquele país.”