Crianças “raptadas” e enjauladas: para quando a desobediência civil?

O crime de separar famílias é secular, ainda estamos a viver os seus traumas. As crianças que já foram separadas, nesta vaga recente, estão traumatizadas. Quem é que vai ser penalizado por tal crime? Ninguém.

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Reuters/MIKE BLAKE

Desde Maio, os Estados Unidos decretaram uma política de tolerância zero em relação à passagem "ilegal" da sua fronteira com o México. Sucede-se a violenta separação de pais, mães e suas crianças. Seria relevante mencionar que entidades como as Nações Unidas já criticaram esta política, apelidando-a de desumana. “Espanto”, é irrelevante: os Estados Unidos saíram do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Consideram o conselho “parcial” e um “pobre defensor dos direitos humanos”. Anedótico? Não. Despótico. E conveniente.

Não vamos ser redundantes e falar sobre os danos permanentes causados pela separação das figuras parentais e crianças, ou imaginar a acústica das gaiolas das crianças e adolescentes raptados, como ressoarão os seus gritos e ataques histéricos, ou se a ventilação é adequada para escoar o odor dos fluidos corporais. Falemos de outro ponto: quando o "bicho-papão" das histórias que contamos às nossas crianças se torna realidade, o que devemos fazer? “Who you gonna call?”

Se estas crianças inocentes estão a ser violentadas, traumatizadas para o resto das suas vidas, a culpa é partilhada. Protegê-las é um dever público. Quando as vítimas são o alvo mais indefeso deste mundo e as pessoas não se enchem de raiva, a humanidade não tem salvação. Há todo um historial que o comprova e tudo se repete. Desde a escravatura que se arrancam dos braços das mães negras os seus filhos. O crime de separar famílias é secular, ainda estamos a viver os seus traumas. As crianças que já foram separadas, nesta vaga recente, estão traumatizadas. Quem é que vai ser penalizado por tal crime? Ninguém. Não se assumem culpas, logo não se apuram responsabilidades, não existem reparações e mudanças impactantes. A tolerância zero mantém-se, prendem-se famílias inteiras, por tempo indefinido. As crianças continuam presas, sem esperança. O lugar delas é num lugar que promova bem-estar e um projecto de vida. Elementar.

Não importa ficar do lado certo da História, importa sim que esta história não aconteça. Há coisas que não se negoceiam. Não há advogado do diabo para racismo, tortura, maus-tratos a menores, violação de direitos da humanidade. Resgatam-se as ruas e os locais certos. Não visitamos "centros de detenção", fechamo-los. Nenhuma criança fica para trás. Diz-nos a História que foi com esta mesma passividade que se deu o holocausto, a escravatura e mais genocídios em curso. Alguém se imaginaria a visitar um campo de concentração, sair, tecer meia dúzia de comentários e seguir para um brunch com amigos? Mais: fossem aquelas crianças brancas, vindas de um país ocidental, seriam os (des)ânimos tão “diplomáticos”? Nunca.

Onde está a desobediência civil? Em tempos com menos recursos, invadiam-se as ruas e arriscava-se. Os protestos eram concertados, com a exigência de obter mudanças imediatas: o direito a estudar e em qualquer escola, a votar e decidir o próprio destino, a matar a sede sem correr risco de vida, com acções que iam desde a permanecer-se sentada num banco de autocarro a fazer parar uma fileira de tanques de guerra. Ainda existem insurgentes, todavia, quase sempre do lado dos oprimidos. E, por isso, pergunto: onde estão os aliados nestes momentos? O que é essa coisa badalada de ser aliado? Nestas alturas, reafirmo que parece não ser nada. São raptadas crianças negras pelo mundo fora, outras são assassinadas pela polícia, as latino-americanas encarceradas em jaulas e a vida continua. Porém, diz-se: “O melhor do mundo são as crianças.” Quais? As vossas?

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