O tempo dos ditadores
O tempo em que tínhamos de nos preocupar com o fim da democracia já foi há tanto tempo que às vezes caímos no erro compreensível de achar que as ditaduras só acontecem em países e épocas a preto-e-branco.
Lembro-me da surpresa com que há muitos anos vi a capa de uma revista portuguesa dos anos 30 chamando a Salazar “O Ditador nacional”. Pensei, mas esta palavra não estará aqui a ser usada como um insulto? E, se sim, como podiam eles fazer isso naquela altura?
Pois bem, é claro que a palavra não estava a ser usada como um insulto, mas como um elogio. Nos anos 20 e 30 do século passado, em determinados momentos e contextos, ser chamado de ditador podia ser entendido como transportando uma carga positiva. Homens políticos em vários países da Europa e do mundo procuravam ativamente serem chamados de ditador — ou termos semelhantes, Duce, Führer — e, claro, punham os órgãos de imprensa dos seus partidos a propagandear esses títulos. Em parte a explicação para o uso elogioso de “ditador” radica na Antiguidade Clássica, quando o dictator era o magistrado extraordinário chamado para pôr ordem na república; mas o uso no século XX ia para lá dessas razões históricas: a verdade é que entre as duas guerras era popular a crueldade brutal no esmagamento dos adversários e a indiferença aos direitos e à democracia constitucional por parte dos ditadores. A ditadura podia não ir a eleições; mas se fosse ganharia uma grande proporção dos votos, se não mesmo a maioria.
Para que a palavra “ditador” ganhasse o sentido negativo e vergonhoso que hoje felizmente (ainda) vai tendo foram precisas uma tragédia na Europa com a 2.ª Guerra Mundial e depois uma lenta e produtiva pedagogia democrática no pós-guerra. A tragédia foi tão grande e a pedagogia tão eficaz que a partir dessa altura nem os ditadores já queriam (ou aceitavam) ser chamados de ditadores.
Essa pedagogia tornou-se agora cada vez mais esbatida, a memória da tragédia esvaiu-se e a maior parte de nós estamos agora demasiado ocupados para dar pelos sinais de alarme. Mas eles estão aí.
No outro dia, a televisão norte-americana Fox News, conhecida pelo seu seguidismo acéfalo em relação a Trump, comentava em tom grandiloquente a chegada do seu ídolo a Singapura para a cimeira com Kim Jong-un, da Coreia do Norte. A locutora pegava num adjetivo exagerado para pôr em frente de outro adjetivo exagerado e assim lá foi dizendo: “esta reunião é histórica!”, “já é histórica ainda antes de ter começado!”, e finalmente, “esta reunião já é histórica independentemente do que se passar na conversa entre os dois ditadores...”. Ups.
Aquele não foi só um momento em que a alguém “fugiu a boca para a verdade”, como se diz em bom português. Foi antes um momento em que ficou ainda mais claro o estado de alienação em que se vive na política de hoje. Não só Trump pode fazer o contrário do que prometeu como pode fazer aquilo que criticou a Obama e ainda assim ser elogiado nos termos mais hiperbólicos pelos seus sequazes. Não só Trump pode ir a Singapura e entremear as bandeiras americanas com as da República Democrática Popular da Coreia do Norte sem deixar de ser adorado pelos mais estrénuos anti-comunistas dos EUA, como estou convencido que seria possível ele virar-se para os americanos e dizer “sabem que mais, a partir de agora quero que me chamem ditador” sem que dos trumpistas houvesse outra resposta que não fosse: “sim senhor, quer com minúscula ou com maiúscula? Ai que tolice, Senhor Ditador, perdoe-nos por termos perguntado, claro que é com maiúscula.” O subconsciente da locutora da Fox News, como vimos, já está mais do que preparado.
O tempo em que tínhamos de nos preocupar com o fim da democracia já foi há tanto tempo que às vezes caímos no erro compreensível de achar que as ditaduras só acontecem em países e épocas a preto-e-branco, como nos filmes e na televisão antiga. Achamos portanto que teremos direito a um marcador ou um sinalizador qualquer que nos diga “aqui acabou a democracia e começou a ditadura”. Qualquer coisa na banda sonora, ou na cor da paisagem. Quando um dia sairmos à rua e estiver tudo a preto-e-branco com uns violoncelos pesados a tocar ao fundo, é aí que começaram os tempos sombrios.
Puro engano. Nos tempos do nazismo e do fascismo as cores do céu eram tão vibrantes como são hoje. Também havia dias fantásticos de Verão. As pessoas seguiam as suas vidas de todos os dias, casavam, eram felizes até — menos aquelas que eram metidas em vagões e com quem só uma minoria se preocupava. Para todos os restantes não havia nenhum aviso. E também não haverá nenhum aviso agora: ou teremos a nossa consciência ou não teremos nada.
Ontem lá começou um Campeonato do Mundo de futebol pronto a ser usado como propaganda na terra de um dos ditadores pós-modernos do nosso tempo. Quantas vezes já vimos isto? Nos EUA há campos de reclusão (chamemos-lhes assim) para crianças imigrantes separadas à força dos seus pais, e estes campos têm à entrada murais pintados com frases triunfantes e retratos do Presidente Trump. Quantas vezes já vimos isto? Na Europa há um barco com 630 refugiados a bordo e só a custo encontrou quem o quisesse receber. Quantas vezes já vimos isto?
Desgraçadamente, parece que não foi vezes suficientes.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico