Quando o projecto surgiu, o silêncio encheu a sala onde o júri avaliava as candidaturas. Estava à frente deles uma das 14 propostas enviadas para o Habitar Porto depois do lançamento, em Novembro passado, de um concurso de ideias para recuperar um ilha em Campanhã, no Porto. Era “um projecto de arquitectura lindíssimo, uma coisa muito bem feita em termos formais e visuais”. Mas havia também um estranho desconforto, como se de repente se tivessem perdido no mapa: qualquer coisa como “mas onde é que está a ilha” de morfologia atípica e 14 casas que ali existia? Era arquitectura “muito bem feita, mas para outro propósito”, explica Aitor Varea Oro. Por isso, mesmo sabendo que a decisão talvez cause alguma controvérsia, o projecto não foi um dos cinco finalistas. Naquela decisão, sem que pensassem racionalmente nisso, estava já a ser cumprido um dos objectivos fixados para o concurso: “Alargar o campo do que se entende como boa arquitectura.”
Ali estava um belíssimo projecto — o preferido de um dos membros do júri do ponto de vista formal —, mas ao eleger a tipologia T0 para todas as casas a proposta não dava resposta ao pretendido. É que a habitação tal como o Habitar Porto a entende não é um fim em si mesmo, mas antes um meio para atingir outros fins.
Já lá voltamos.
A ideia do concurso “Pensar, construir, habitar” era ajudar Andreza Jesus (uma proprietária disposta a não pôr o lucro à frente de tudo o resto) a recuperar o seu património a custos controlados, ao mesmo tempo que garantia aos inquilinos o acesso a habitação de qualidade a preço justo. E isso é possível? Sim, provaram as 14 propostas apresentadas, que a partir desta sexta-feira, dia 15, vão ocupar as paredes do MIRA Fórum, no Porto, onde se fará também um debate (18h) com as presenças de Helena Roseta (arquitecta e deputada), Helena Amaro (advogada e investigadora nas áreas de urbanismo e arquitectura), Margarida David Cardoso (jornalista do PÚBLICO) e Paulo Vieira (arquitecto da divisão de urbanismo da Câmara do Porto).
Mas desengane-se quem pensa ir ao MIRA ouvir falar de arquitectura. Palavra ao fundador do Habitar Porto, Aitor Varea Oro: “Não queremos discutir arquitectura, mas antes o que fazer a partir dela”, explica. O espanhol gostava que esta não fosse “uma exposição de um conjunto de projectos”, mas sim “a exposição de uma plataforma que permite aprender com a experiência e dar cada vez mais garantias a inquilinos e proprietários”. Por outras palavras: o que está em causa “não é um projecto para uma ilha, é uma ideia de cidade”.
As soluções apresentadas trouxeram novas perspectivas. Todas cumpriram os requisitos de recuperar área comum e aumentar a dimensão das habitações do número 52 da Rua das Antas, uma ilha incomum, com um pátio triangular no meio das casas em vez do tradicional corredor. Mas todas apresentaram perspectivas distintas.
Uma casa em crescimento
Entre as propostas finalistas está uma que faz jus ao método do prémio Pritzker Alejandro Aravena, homem da arquitectura social que foi beber inspiração ao teórico John Turner, que falava de habitação evolutiva. “Ele dizia que tínhamos de dar às pessoas aquilo que elas não podiam construir — telhados, instalações, cozinha, casa de banho — e deixar o resto para as famílias fazerem quando pudessem investir”, explica o criador do Habitar, que começou a sua intervenção na freguesia do Bonfim e se alargou entretanto a Campanhã. O projecto em causa prevê a construção de uma estrutura passível de ser ampliada. Ou seja, um T1 pode, com o tempo, ser um T2 ou T3. E junta a isto a proposta de um modelo económico em que o inquilino tem direito a uma renda inicial baixa que poderá ser actualizada se a casa for expandida.
O modelo, diz Filipe Oliveira, da junta de freguesia de Campanhã, parceira do concurso, dá resposta a um problema comum nas ilhas: “Muitas vezes as pessoas não cuidam da casa porque não a vêem como delas”, diz, evocando a sua experiência de mais de 40 anos na Associação de Moradores de Contumil. “É um princípio muito interessante” o pensado pelos concursantes, diz Aitor: “O modelo fixa uma renda inicial muito baixa para fixar a população e criar um sentido de pertença: garante-se que vão investir na casa porque a sentem como sua.”
As ilhas são por si só bons exemplos de arquitectura evolutiva. Há tempos, a um aluno que orienta na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto e que está debruçado sobre esta temática, Aitor sugeriu precisamente que fosse passear pelas típicas casas portuenses do século XIX. Nelas foram feitos, muitas vezes, acrescentos em busca de espaço extra numa tipologia que tem em média 16 metros quadrados. E mesmo que nem sempre sejam formalmente correctas vale a pena olhar para essas soluções.
Recuperar os bons vizinhos
Há quem proponha um tanque comunitário num canto da ilha, há quem o desenhe bem no centro. Há estendais comuns, churrasqueiras, jardins partilhados com relvados e pequenos jardins individuais, pátios em níveis superiores, hortas, painéis solares. Várias estruturas que procuram intensificar as relações entre vizinhos. Um dos projectos, conta Aitor Varea Oro encantado com o pormenor, põe sempre as cozinhas viradas para o pátio central, o que favorece o convívio. E outro até desenha uma espécie de namoradeira no pátio comum.
Em mais do que um caso, os arquitectos propõem a adopção de um módulo comum a todas as casas. Num deles junta-se nessa estrutura a cozinha, a casa de banho e as escadas. O que significa isto? “Organiza as [obras das] especialidades: a semana 15 da obra, por exemplo, é para o picheleiro fazer o trabalho em todas as casas. Depois vai embora e vem outra especialidade. Isto é economia de meios”, explica.
Aos arquitectos, era pedido mais do que um projecto de arquitectura. Porque, como explicava Aitor Varea Oro ao P3 numa visita à ilha das Antas feita aquando do lançamento do concurso, “não há contradição entre arquitectura e objectivo social. Pelo contrário: a arquitectura pode ser uma ferramenta social.”
Sugestão de outra proposta finalista: fixar rendas máximas e rendas para utentes do Gabinete de Acção Social (GAS) — com valores concretos já estudados. “Foram buscar os diplomas estatais existentes para adaptar as propostas”, aponta felicitando a ideia.
Quem quer morar numa ilha?
Faltam estudos sobre as ilhas. Não sobre a sua história, mas sobre o seu futuro. Quem está, afinal, disposto a morar nestas pequenas casas? Quem aceita habitar num lugar sem garagem? Quem valoriza as relações de vizinhança? Quem prefere um espaço no centro da cidade à periferia, mesmo que isso signifique viver em menos metros quadrados?
Estas pequenas casas “são unidades morfotipológicas que não existem como tal no PDM”, expõe Aitor Varea Oro, “não é que não existam regras de gestão, mas são mais opacas e difíceis de interpretar”. Basta fazer o seguinte exercício: uma casa com frente de rua tem de cumprir regras para essa frente de rua e quando muito para o quintal nas traseiras. Numa ilha “há condições para todos os lados e é preciso respeitar tudo”.
Receita de ponto difícil. Mas para qual surgiram ideias que podem fazer escola. Um dos objectivos definidos pelo Habitar Porto era “juntar coisas que estavam separadas: os inquilinos por um lado, os proprietários por outro, os técnicos por outro”. Agora, aponta Aitor Varea Oro, “o que há entre a proprietária e os concorrentes é uma ideia de cidade e não um caderno de encargos”.
Falta a decisão final: “A difícil tarefa de olhar para estas propostas e saber o que é mais útil tendo em conta o que se pretende para uma ilha”. E isso está nas mãos de Aitor Varea Oro, a proprietária Andreza de Jesus, Filipe Oliveira, da junta de Campanhã, o arquitecto Pedro Ramalho e o sociólogo Roberto Falanga. O júri anuncia o vencedor no último dia da exposição (30 de Junho). Até lá, pode conhecer-se no MIRA Fórum as propostas (vencedoras e vencidas), deixar perguntas, fazer sugestões.
Regressemos então à ideia da habitação não como um fim em si mesmo mas um meio para alguma coisa: “Se as pessoas não gastam tudo o que têm na renda podem investir em educação, cultura, etc.” O que se resolve neste campo, argumenta Aitor Varea Oro, “é poupança no resto das políticas”. A lógica é simples, argumenta: casas bem construídas podem significar menos despesas para o Serviço Nacional de Saúde, habitações centrais melhoram o meio ambiente ao diminuir a dependência de meios de transporte, mais diversidade social provoca mais diversidade nas escolas, densificar a cidade é recuperar população. No final, todos saem a ganhar.