Mais duas pessoas mortas na Índia após mensagens falsas no WhatsApp
Desde Abril já foram mortas nove pessoas, acusadas por multidões em fúria de serem raptores de crianças. Casos lançam debate sobre as redes sociais mas também sobre a falta de confiança nas instituições.
Eram quase oito da noite e os dois amigos regressavam de uma visita a uma queda de água numa zona remota, no Nordeste da Índia, onde tinham ido gravar sons da natureza. Perdidos, pararam numa aldeia para pedir informações, mas a carrinha preta em que viajavam e as roupas e penteados estranhos selaram-lhes o destino: foram cercados por dezenas de pessoas, acusados de andarem a raptar crianças na região e espancados até à morte após uma hora de tortura.
Nilotpal Das, de 29 anos, e Abhijeet Nath, de 30 anos, foram mortos na noite de sexta-feira numa aldeia do estado de Assam. E o seu linchamento teve contornos semelhantes aos de outros casos recentes ocorridos no Sul, a mais de 3000 quilómetros de distância.
Só em Maio, seis pessoas foram espancadas até à morte na Índia por multidões, em comunidades tomadas pelo medo por causa de mensagens falsas partilhadas através da aplicação WhatsApp.
A mais recente onda de linchamentos no país começou no estado de Tamil Nadu, em Abril, com a morte de um homem com problemas mentais, e espalhou-se depois pelo Andhra Pradesh, Telengana e Karnataka, todos no Sul da Índia.
As vítimas tinham pouco em comum, para além de serem vistas pelos seus carrascos como estranhas ou deslocadas: uma mulher de 65 anos que fazia turismo e que foi vista a dar chocolates a duas crianças; um homem que não falava o dialecto local; uma mulher transgénero que pedia esmola na rua; dois amigos numa carrinha preta, perdidos no meio do nada.
200 milhões de utilizadores
Nenhum destes casos aconteceu em zonas onde tinham acabado de ser raptadas crianças, e a polícia não tinha lançado qualquer tipo de alerta que deixasse as pessoas de sobreaviso.
Como orientação para distinguirem entre quem podia seguir a sua vida e quem devia dar mais explicações, os habitantes locais tinham apenas mensagens partilhadas em grupos no WhatsApp – a aplicação de troca de mensagens comprada pelo Facebook em 2014 e que na Índia tem mais de 200 milhões de utilizadores.
Num desses vídeos, que circula por smarphones e tablets na Índia com a mensagem "raptores", vêem-se dois homens numa motorizada a raptarem uma criança que está na rua com amigos. Mas a verdade é que nada daquilo se passou na Índia, e nem sequer se trata de um rapto real, segundo o correspondente da BBC – foi tudo encenado para uma campanha de combate ao rapto de crianças no Paquistão. O vídeo foi editado e posto a circular sem a parte final, onde surge a informação de que se trata de uma campanha.
A partir de vídeos como esse, foram partilhadas muitas outras mensagens falsas, num fenómeno imparável que começou no WhatsApp e que ganhou mais força e credibilidade quando chegou às páginas de alguns jornais locais.
Depois, a dimensão do país e a dificuldade para se distinguir entre a verdade e a mentira no meio de uma avalancha de informação fazem o resto: o WhatsApp é um dos meios mais utilizados pelos partidos políticos para chegarem aos eleitores e funciona em quase todos os telemóveis, tanto em iPhones como nos mais baratos das inúmeras marcas com o sistema operativo Android.
Não há soluções mágicas para este problema. "Quando os rumores começam a circular nas redes sociais, é preciso algum tempo para os travar completamente", disse à BBC o chefe da polícia do estado de Assam, Mukesh Agarwal.
Para além do trabalho de identificar e mandar apagar vídeos, fotografias e outras mensagens nas redes sociais e em aplicações como o WhatsApp – um trabalho que nunca acaba –, a polícia indiana tem apostado numa campanha à moda antiga: em Maio, agentes das 57 esquadras da polícia de um distrito de Tamil Nadu percorreram quase 700 aldeias de motorizada, com megafones, para garantirem que não havia nenhum "gangue do Norte da Índia" a raptar crianças na região.
"Foi a única forma de pacificar os residentes, que estavam em pânico", disse ao Los Angeles Times o chefe da polícia do distrito de Vellore, S. P. Pakalavan.
Do lado dos responsáveis pelo WhatsApp, a resposta é semelhante à que foi dada pelo fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, nas suas recentes passagens pelo Senado norte-americano e pelo Parlamento Europeu, quando foi convidado a explicar o uso de informação pessoal dos seus utilizadores por empresas que promoveram o "sim" no referendo ao "Brexit" ou a campanha eleitoral de Donald Trump: "O WhatsApp tem facilitado e tornado mais confiável a comunicação para milhões de indianos, incluindo organizações comunitárias e a polícia, ainda que, infelizmente, algumas pessoas usem a aplicação para espalhar desinformação prejudicial."
No caso da morte de Nilotpal Das e Abhijeet Nath, na passada sexta-feira, a polícia deteve 18 pessoas – a maioria por participação no linchamento dos dois amigos, mas também alguns por partilharem informações falsas, disse o director-geral da polícia de Assam, Kulafhar Saiki, à Al-Jazira. Uma testemunha ouvida pelo Indian Express disse que os dois homens chegaram a estar cercados por pelo menos 500 pessoas, de várias localidades, que tinham sido chamadas à pequena aldeia por um primeiro grupo.
"Os linchamentos por multidões são um instinto primitivo", disse à Al-Jazira a activista indiana Tinat Atifa Masood. "Ninguém sabe porque é que aquelas pessoas estão a linchar outra, mas todas elas parecem ter sido enfeitiçadas para matar."
Uma delas, um jovem de 18 anos identificado como Raju numa notícia do site indiano The Wire, deixou claro que o WhatsApp é fundamental na sua vida. Mas apontou a falta de confiança nos políticos e na polícia como razões para cair no feitiço de que falou Tinat Atifa Masood.
"Acordamos com mensagens do WhatsApp. Adormecemos depois de ler mensagens do WhatsApp. Para nós, o WhatsApp é a nossa vida, o nosso Facebook, o nosso Twitter. Não interessa que os políticos ou a polícia digam que os vídeos e as mensagens não são verdadeiros, nós temos de acreditar naquilo que é para o nosso bem. Eles não vão aparecer para nos ajudar. Temos de fazer justiça pelas nossas próprias mãos."