“Foi a primeira vez que a malta viu o povo”

O sofrimento de uma população abandonada à sua sorte pelo Governo da ditadura levou estudantes universitários a conhecerem uma realidade bem distante da sua zona de conforto. Em Fevereiro de 1968, esvaziaram uma piscina para reflectir sobre a sorte do país. Esta semana voltaram lá.

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Dirigentes de há 50 anos voltaram a escolher a piscina do Técnico para a reunião Miguel Manso
Lisboa, Cheias de 1967 na região de Lisboa
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As cheias de 67 provocaram mais de 400 mortos Terence Spencer/GettyImages

Na noite de 25 e madrugada de 26 de Novembro de 1967, a região de Lisboa foi assolada por uma tempestade de chuva que dizimou as barracas e os bairros populares da periferia da cidade. As enxurradas de água, o mar de lama e de detritos sepultaram centenas de pessoas. Perante a dimensão da catástrofe, estudantes universitários de todas as tendências, incluindo os católicos entre os quais despontava António Guterres, acorreram em socorro das populações.

“Foi a primeira vez que a malta viu o povo”, reconhece ao PÚBLICO José Brazão Pires, então estudante de Engenharia Química e hoje sociólogo, referindo-se ao apoio às populações afectadas pelas cheias. “Estive metido até ao pescoço na Vala do Carregado. Foi a primeira vez que houve uma proximidade entre os estudantes e a população”, descreve. “A nossa onda nada tinha que ver com o resto da população”, admite.

Em Fevereiro do ano seguinte, o IV Seminário de Estudos Associativos abordou a situação do movimento estudantil com um renovado élan e a experiência única de contacto com o povo na bagagem. O relato deste tempo foi analisado esta semana dentro da piscina da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico (IST). A mesma piscina contra a ditadura.

O mundo, em 1968, vive num fervilhar de acontecimentos que culmina com o assassinato, em 5 de Julho, do senador Robert Kennedy no hotel Ambassador de Los Angeles. Há o Maio francês e a guerra do Vietname. “O que conta é a pop generation, os Beatles, os Rolling Stones”, diz Brazão Pires. Em Portugal, na oposição aparecem novos protagonistas. “Entre 1967 e 1969 nascem 14 organizações políticas clandestinas, sobretudo maoístas”, enumera ao PÚBLICO o então estudante Carlos Braga, agora professor de Gestão da Universidade Lusíada.

O mar revolto e a piscina

É neste mar revolto que entre 17 e 19 de Fevereiro, 23 e 24 de Março, decorre na piscina do Técnico o IV Seminário de Estudos Associativos de 1968. A escolha do local não se deve a preferência desportiva. Mas a um princípio de prudência: a piscina é propriedade da Associação de Estudantes, o que evita uma situação de compromisso para a direcção do Técnico e torneia a repressão.

Para tanto, é retirada a água, e no enorme tanque, com um desnível acentuado entre a zona mais profunda e a de acesso mais fácil, é montada uma sala de reuniões, com três mesas e uma plateia de cadeiras. O resto do espaço transformar-se-á durante a iniciativa numa espécie de balcões. O primeiro, ao nível das escadas de acesso à piscina, o segundo na varanda superior. Esta distribuição foi copiada na cerimónia desta semana.

A reunião termina a 24 de Março, Dia do Estudante. Pura coincidência: o encontro conclui-se dois dias depois de, em 22 de Março, os estudantes franceses terem ocupado a Universidade de Paris Nanterre, no começo do Maio francês. “Fizemos uma reflexão teórica do que se tinha passado entre nós e o que iríamos fazer no futuro do movimento associativo”, diz Henrique Pereira, catedrático jubilado do Técnico, sobre os trabalhos.

A declaração de princípios do movimento associativo então aprovada refere aquelas estruturas como tendo natureza sindical, classifica os estudantes como jovens trabalhadores intelectuais e pugna pela reforma do ensino. Eleva o estudante à condição de classe social e não faz qualquer referência à situação que mais atormentava os jovens de então, a guerra colonial — com o objectivo de evitar a repressão.

“Fizemos uma manifestação contra a guerra do Vietname, saímos do Técnico em direcção à embaixada dos Estados Unidos, que era na Avenida Duque de Loulé, onde fomos recebidos pela polícia de choque, mas era uma forma de protestar contra a guerra colonial”, recorda Carlos Braga. Nas memórias dos protagonistas renasce a controvérsia, como dantes, na forma de classificar a orientação dos movimentos dos estudantes. “Até então, quem tinha mais força era o PCP, mas à sua esquerda apareceu uma minoria contestatária, uma mistura de jovens estudantes de várias formações maoístas”, conta.

A adesão universitária ao seminário não teria a mesma expressão sem o apoio dos estudantes às populações afectadas pelas inundações de Novembro de 1967. “A Juventude Universitária Católica contactou as associações de estudantes para apoiar as pessoas vítimas das cheias, e começou pela do Técnico, que era a que tinha mais capacidade organizativa e dinheiro”, lembra o hoje jornalista Fernando Valdez. “A questão foi discutida na RIA [Reunião Interassociações], formámos uma comissão organizadora e partimos para o terreno”, relata. Então, foi a surpresa.

“A minha família era de Trás-os-Montes, da região de Mirandela, uma zona de muita pobreza, mas o que encontrei na Aldeia da Quinta, concelho de Vila Franca de Xira, foi muito mais miséria”, afirma António Armando da Costa, professor aposentado do IST e astrofísico. “Se eu fiquei chocado, os outros ficaram em estado de choque, basta recordar que na Aldeia da Quinta morreram mais de metade das pessoas que lá viviam.”

No terreno, a mobilização prosseguia. O centro de operações estudantil naquele final de Novembro de 1967 estava montado no Técnico. Faziam-se sandes, preparavam-se refeições, procurava-se roupa. Despontavam dirigentes associativos como Mariano Gago e António Abreu.

Nos anos 60 do século passado, os universitários eram filhos de classes instaladas a caminho de serem uma elite. Os do Técnico viviam entre coordenadas definidas: os cafés da Avenida de Roma e o Saldanha, o Tatu no Campo Grande e o Vavá da Avenida Estados Unidos da América. Os das outras faculdades ancoravam nas esplanadas junto à cidade universitária. Mas a 20 quilómetros deste centro de conforto tudo mudava. A paisagem era outra. A realidade mais pungente. “Os filhos da burguesia começaram a ver que nem todos éramos iguais”, sintetiza Henrique Pereira. Foi a primeira ressaca das cheias.

“O Governo tentou travar o papel dos estudantes, mas não conseguiu”, lembra Valdez. Mais, e pior para os objectivos da ditadura: as autoridades foram superadas. “Os estudantes de Medicina, com o apoio de professores da universidade, entraram em contacto com os laboratórios, que lhes deram vacinas para evitar as epidemias”, destaca. As estruturas do Estado, a máquina administrativa, à excepção de soldados de quartéis que actuaram por decisão dos seus comandantes sem ordem das hierarquias ministeriais e do pessoal de algumas câmaras municipais afectadas, não responderam em tempo útil.  Foi o momento de uma autogestão na ajuda.

A atitude humanitária dos estudantes, a sua capacidade de organização e abertura ao país tiveram imediatas consequências. Interagiu com a sociedade e a população em dificuldades descobriu a bondade estudantil. “Estávamos numa universidade fechada ao mundo, elitista, e começámos a ter consciência de que a resolução dos nossos problemas enquanto estudantes não seria feita sem resolver os problemas da população”, sintetiza Armando da Costa. “Houve uma certa surpresa das populações, nós, os estudantes, fomos os segundos a aparecer depois dos bombeiros”, assinala Valdez. “Havia muitos estudantes que não tinham consciência política nem actividade associativa e que ficaram surpreendidos, o que viria a ser muito importante para a mobilização”, analisa Carlos Braga.

“Tenho orgulho nesta casa”

Esta simbiose formou uma tempestade perfeita: evidenciou a inoperância de um regime que assinou, então, um atestado de caducidade e incompetência. Com todos estes elementos na mochila, o seminário de estudos associativos, já marcado antes das inundações para Fevereiro e Março de 1968, não podia ser contido numa discussão endogâmica entre os muros das universidades.

“A partir de 1967, o regime deixa de controlar a situação”, considera José Pacheco Pereira, responsável da associação cultural Ephemera, que, com a associação de estudantes do Técnico e a direcção do IST, organizou a sessão comemorativa. Aliás, 1968 foi um ano fronteira. Marca um antes e depois. É certo que a guerra colonial se iniciara em 1961, que a crise académica de 1962 deu um abanão no regime e que a deserção dos mancebos já começara. Mas em 1968 existem marcos importantes.

“É o ano em que Salazar cai da cadeira, em que há uma certa liberalização do regime com Marcello Caetano, alguma liberdade sindical para, depois, tudo voltar atrás devido à guerra colonial, o que leva a uma radicalização de posições”, explica Pacheco Pereira. Entre os avanços e os recuos da Primavera marcelista, desfazem-se tabus.

“Na biblioteca do Técnico, havia então um busto de Lenine [esse mesmo, Vladimir Illitch]”, exemplifica perante um sorriso de Fernando Valdez. “Antes, as pessoas já eram politizadas, mas começa a haver uma certa ostentação dessa condição”, prossegue o historiador. “O grupo de teatro do IST tinha preparado uma peça, O Racismo não Existe, um espectáculo anticolonial, e levou outra à cena, Ir ou não Ir, sobre o dilema da deserção, há uma mudança de ares”, conclui.

“Quando vi todo o material que tínhamos no nosso arquivo, pensei que antigamente os dirigentes associativos não viviam as mesmas dificuldades que nós, que sofriam pressões e estragavam a vida”, afirma Duarte Soares, vogal durante três mandatos na Associação dos Estudantes do Técnico, agora à frente das comemorações pelo lado estudantil. “Tenho orgulho nesta casa”, confessa.

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