Quando as “escavadoras” chegam a todo o lado, o que fica de pé?

É o último espectáculo nas tábuas da sala Raul Solnado, na Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul. A colectividade muda-se no fim do mês para um espaço provisório na Casa dos Mundos, que a vai obrigar a “reinventar-se” para não cair no esquecimento.

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A peça está em cena pela última vez este sábado às 21h30 na sala Raul Solnado, na Cossoul Nuno Ferreira Santos
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A peça está em cena pela última vez este sábado às 21h30 na sala Raul Solnado, na Cossoul Nuno Ferreira Santos
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A peça está em cena pela última vez este sábado às 21h30 na sala Raul Solnado, na Cossoul Nuno Ferreira Santos
Teatro musical
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A peça está em cena pela última vez este sábado às 21h30 na sala Raul Solnado, na Cossoul Nuno Ferreira Santos
Acessório para instrumentos musicais
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A peça está em cena pela última vez este sábado às 21h30 na sala Raul Solnado, na Cossoul Nuno Ferreira Santos

— Olá, está tudo bem? É só para informar que amanhã não precisa de vir.

É o fim anunciado de uma fábrica de família, construída junto ao braço de um rio, que sobreviveu durante algumas gerações, mas onde agora as retroescavadoras ameaçam reduzi-la a nada. Um sofá, uma secretária e duas cadeiras, arquivos, montes e montes de papéis. Ali tenta-se travar (ou será promover?) o fim de um legado, enquanto se despedem pessoas, se ouvem protestos e as escavadoras a avançar, depois de já terem arrasado os armazéns vizinhos. Esta é a premissa para Desmaterialização, a última peça que estará em cena na Cossoul, antes da mudança de casa. Este sábado, às 21h30, é apresentada pela última vez.

Quando Paulo Tavares leu pela primeira vez o texto de Tiago Patrício (Prémio Agustina Bessa-Luís de 2011), não imaginara que dali a uns tempos o estaria a encenar para ser a derradeira peça em cena nas tábuas da sala Raul Solnado, na sede da Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul, que no fim de Junho vai abandonar as suas centenárias instalações na Avenida Dom Carlos I. 

O cenário é o de uma fábrica de pijamas em falência, onde todos os dias se dispensam costureiras que já foram como “fadas” e onde impera “uma espécie de burocracia e uma realidade que nem sempre se compagina com as necessidades humanas”, reflecte o presidente da Cossoul. Foi por isso que se lembrou das palavras que Patrício escrevera num laboratório de dramaturgia do Teatro Meridional, quando se pôs a pensar na mensagem que queria que o Colectivo Prisma, ali residente, deixasse pela última vez naquele local. 

A realidade da trama de Tiago Patrício sobre o capitalismo contemporâneo inquieta de tão próxima que pode ser da realidade da Cossoul. A incerteza começou a pairar sobre a sociedade há uma década quando o edifício, na zona de Santos, foi vendido. Depois disso, voltou a ser posto no mercado por milhões, uma e outra vez.

A colectividade já era para ter deixado o número 61 da Avenida D. Carlos I no final do ano passado. Era isso que o senhorio queria, mas a câmara de Lisboa interveio e conseguiu chegar a acordo para que a Cossoul ali permanecesse até ao fim de Junho.

É também a autarquia que lhes providencia um espaço “a título transitório” na Casa dos Mundos, umas ruas acima da actual sede, na Rua Nova da Piedade. A ideia é que permaneçam por ali cerca de um ano e meio, para se mudarem depois — e definitivamente, esperam —, para o Centro Comunitário da Madragoa, que pertence à junta da Estrela.

“Tem sido um ano e meio bastante complicado naquilo que é o interesse da instituição, com um processo burocrático muito moroso”, lamenta Paulo Tavares, sentado no palco da sala Raul Solnado, já depois do ensaio geral e de se afinarem os pormenores para a estreia do espectáculo, que aconteceu na semana passada. 

A associação cumpre, em 2018, 133 anos, depois de ter nascido pela mão de alunos de Guilherme Cossoul, maestro e violoncelista português que foi também fundador da Associação dos Bombeiros Voluntários de Lisboa. Além da música e dos bailes, a sociedade teve sempre actividades de "intervenção na comunidade". Há jovens de bairros mais desfavorecidos que ali começam a aprender um instrumento, têm aulas de música.

“Quem é que se vai lembrar de mim daqui a 100 anos?”

O director da fábrica (Rui Ferreira), o adjunto (Cláudio Henriques), a administradora (Sara Felício) são parte de uma comédia — ou uma tragédia disfarçada de comédia — com laivos de sátira às relações que atravessam a máquina de uma empresa, à forma burocrática de comunicar, num tempo em que “já não se dá espaço ao erro”. 

O que as move nem sempre é claro. A administradora lê as borras do café, o adjunto serve cegamente o chefe que tanto pega no telefone e grita “Faça-me três elogios. Rápido!”, e se diverte a despedir pessoas, como entra numa crise existencial: “Quem é que se vai lembrar de mim daqui a 100 anos?”.  

É essa compaixão que a determinado momento sentimos pelos maus da fita que humaniza esta peça. “É possível cometer uma grande atrocidade e ao mesmo tempo sentirmos que se justifica cometê-la?”. Eles mostram que sim. No final das contas, seremos assim tão diferentes deles?

Nos próximos tempos, a Cossoul terá de se reinventar. As aulas da Escola de Tecnologias Inovação e Criação (ETIC), que costumam acolher, não poderão ser dadas no novo espaço, que não tem também um auditório para pôr uma peça em cena. “As salas são mais pequenas. Não temos espaço sequer para ensaiar”, nota Paulo Tavares, o que os vai obrigar a desenvolver projectos com outras instituições e promotores culturais. 

Mas há algo que os descansa. Ao longo de quase 133 anos, a Cossoul foi capaz de se rejuvenescer. Manteve-se num bairro que atravessa hoje “profunda transformação”. 

“Uma instituição com uma longevidade tão grande e com uma actividade tão abrangente, não só artística, mas também de intervenção social, deve ser acarinhada”, acredita Paulo, pedindo ao público que acompanhe este processo de reinvenção da Cossoul. Porque passado o estrondo com que as portas se fecham, há que voltar atrás para ver o que ficou.

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