Rachel Kushner na intimidade de uma condenada

Entrou em prisões como voluntária, falou com reclusas, guardas, advogados. Queria que a sua vida os incluísse. Como se vive com o “para sempre” de uma pena perpétua numa prisão de mulheres da Califórnia? Um mergulho no íntimo mais negro, com humor para sobreviver: O Quarto de Marte, edição simultânea em Portugal e nos EUA.

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Chloe Aftel

Romy Leslie Hall “não queria saber de trabalho honesto”, limitava-se a fazer o que não a “repugnava”, e este facto talvez diga o suficiente acerca da sua tragédia. Aos 29 anos passou a usar um número à frente do nome. Era a reclusa W314159 em véspera de ser transferida para a maior prisão de mulheres do mundo, lugar em Central Valley, Califórnia, onde iria cumprir duas penas perpétuas e mais seis anos. Resguardada à força do exterior, passaria a viver de memórias, entre elas as do tempo em que ganhou a vida como stripper e prostituta até ao dia em que matou um dos clientes, Kurt Kennedy, a quem chamou Kennedy Asqueroso, homem que a perseguiu e ameaçou. No dia do julgamento, o tribunal não teve dúvidas em quantificar a culpa. “Tudo o que os doze membros do júri ficaram a saber foi que uma jovem mulher de dúbio carácter moral — uma stripper — matara um cidadão íntegro, um ex-combatente do Vietname, que sofrera um acidente de trabalho e tinha uma incapacidade permanente. Como houvera uma criança envolvida, eles ainda acrescentaram uma acusação de negligência infantil, considerando que a criança havia sido posta em perigo. Era irrelevante que a criança fosse o meu filho, e que a pessoa que o pusera em perigo fosse o Kurt Kennedy.”

Romy é a protagonista de O Quarto de Marte (Relógio d’Água), de Rachel Kushner, a autora de Telex de Cuba Os Lança-Chamas, livros que lhe valeram nomeações para o National Book Award, a admiração da crítica e que a cotaram como uma das representantes mais criativas da literatura norte-americana. Aos 50 anos, foca-se num tempo próximo do presente para interpelar o sistema prisional feminino da Califórnia e a invisibilidade a que estão sujeitas as mulheres condenadas. Para isso, conta a história de Romy. E nessa narrativa mostra-se menos interessada nas circunstâncias que a terão levado à prisão do que em explorar o modo como alguém vive enjaulado e lida com o “para sempre” que subjaz a uma pena perpétua.

“Sempre me perturbou o facto de as pessoas ficarem numa prisão para toda a vida. É uma coisa muito americana, e uma ideia bizarra de punição; resulta de uma decisão estruturalmente arbitrária. Nunca se sabe quanto tempo uma pessoa irá viver. Podem ser quatro ou 40 anos, mas é como se com a vida pudessem reparar os danos que causaram. É muito estranho”, diz a partir de Londres, onde está a promover este romance com edição simultânea em língua inglesa e em Portugal e que tem sido classificado como o mais político dos seus livros. Será? Se assim for, é também o mais negro e o mais divertido, o mais livre de um enredo, mas o mais comprometido com uma personagem a partir da qual tudo se estrutura: Romy, a rapariga educada no silêncio de uma mãe que lhe deu o nome de uma mulher trágica. “A minha mãe deu-me o nome de uma actriz alemã que disse a um assaltante de bancos, num programa de televisão, que gostava muito dele.” Nessa frase parece traçado um destino de sombra.      

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Chloe Aftel

A ideia do romance terá surgido em 2012, quando Rachel terminou Os Lança-Chamas, romance situado nos anos 1970, com os movimentos políticos radicais na Europa a contaminarem o imaginário americano. Isso feito, era tempo de entender o seu tempo e a sua geografia com um foco preciso: o sistema prisional da Califórnia nos anos da Administração Bush.

“Sabia que queria escrever um romance contemporâneo, e isso mudava muita coisa, já que ao fazê-lo se pede ao escritor que sintetize algum tipo de significado do que observa no seu próprio tempo. Eu queria escrever um livro sobre o mundo em que vivia e as mudanças que aconteceram desde os anos 1970”, sintetiza. Referindo em particular a Califórnia e São Francisco, não tem dúvidas, “as mudanças são de vulto”, com um factor a condicionar os outros: “A transição de uma economia industrial para um capitalismo financeiro excluiu muita gente.”

Romy pertence aos excluídos. Rachel nem por isso, apesar de terem partilhado — ficção e realidade — o mesmo bairro em São Francisco. Natural de Oregon, onde nasceu em 1968, filha de dois cientistas beatnick, mudou-se para “Frisno” (diminutivo da cidade) com dez anos e fez lá toda a escola.

“Talvez por isso quisesse, finalmente, entender como é que a sociedade se estruturou ali, no lugar de onde sou, onde vivo.” No livro, essa análise é feita recorrendo à memória de Romy, quando ela lembra uma amiga. “A Eva andava nas ruas. A sua mãe tinha morrido de overdose. P Pall Mall havia fechado. Os Scummerz tinham desaparecido. O bairro de Sunset estava transformado. (...) Tudo foi transformado pelo dinheiro, e eu comecei a sentir a falta daqueles sítios sombrios e cheios de más recordações, queria-os de volta.” 

Não é uma crítica à gentrificação, garante Kushner. “As cidades mudam por alguma razão subjectiva que para mim não é importante. Importam-me mais as memórias daquela mulher”, Romy Hall. “Ela vivia no meu bairro e testemunhou uma cidade que eu conhecia intimamente, um mundo com as mesmas pessoas que conheci”, salienta. Romy vive no tempo da adolescência de Kushner. “Não que seja como eu, mas estava lá como eu estive; não é uma rapariga que tivesse conhecido; é uma criação ficcional e isso era importante para documentar um lugar que foi o de alguém e que já não existe. Não necessariamente por causa da gentrificação, mas porque desapareceu. E mesmo que não traga boas memórias continua a pertencer a essa pessoa. Ou seja, não tendo boas memórias, ainda assim as quer de volta.”

Talvez por isso este é também um livro sobre a infância. Não foi intencional. Há pedaços do passado de Romy que levam o leitor à inevitabilidade do presente dela. Mas seria esse presente assim tão inevitável? Pelo menos não se estranha que assim tivesse sido. Romy vai parar à prisão porque tudo parece tê-la encaminhado para ali. Há nisso uma estratégia de escrita ambígua que tanto quer alimentar como deixar a dúvida acerca da inevitabilidade. “Não sei porque é que o destino dela foi moldado daquela forma, mas há qualquer coisa nela que lhe permite cometer um acto de extrema violência contra outra pessoa. Com isso não estou a dizer que ela nunca teve uma oportunidade de ser diferente”, esclarece a escritora, que assume a génese ficcionada de Romy e a fuga a moralismos.

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Lucy Raven

Romy nunca existiu como não existiram as personagens que a rodeiam e são nomeadas. Heroinómanos, prostitutas, dealers, assassinos, violadores, bêbedos, vigaristas, chulos, condenados, moribundos que se arrastam pelas ruas, mães silenciosas, pais ausentes. “Há muitas memórias que ela partilha que são as de pessoas que estiveram perto de mim e algumas até são minhas.” Quando o leitor conhece Romy, percebe como tudo isto vive nas suas recordações mais antigas e tantas vezes associado a uma ideia precisa, a de trauma. “Pensei no trauma e no facto de que as coisas de que nos lembramos mais são as que nos traumatizaram.” Mais ainda nesse lugar da invisibilidade que é a prisão.

É o sítio onde ela partilha a existência com Conan, a mulher de barba e músculos de homem; Laura Lipp, que matou uma criança; Sammy Fernandez, uma das líderes da prisão; Betty La France, amiga de Sammy, que adorava dinheiro e matara e mandara matar por isso e se cruzara com Doc, o polícia corrupto e assassino detido numa prisão para homens. Reclusas, guardas e Gordon Hauser, o professor, o único a fazer a ponte entre a prisão e o mundo lá fora que interiorizara uma das regras que fazia parte do código social dos reclusos: “Não devemos perguntar às pessoas por que crime foram condenadas.”

Gordon é “uma ave rara”, alguém cuja missão é ensinar àqueles que nem o sistema acredita que terão hipótese de recuperação. Ele explora o papel do trauma na memória ao tentar perceber, como Kushner, o mundo que o rodeia. Mais do que isso, ele queria encontrar um equilíbrio pessoal, e investigava, ciente do pensamento de Nietzsche, que, acerca da verdade, dissera que “cada ser  humano tem direito a tanta quanta possa suportar.”

A escrita de Kushner gere-se por essa máxima. Que sofrimento, que nível de violência, que consciência dessa violência cometida ou sofrida pode uma reclusa suportar?  E ele, que verdade consegue saber de quem lhe entra todos os dias na sala de aula? É um homem aparentemente pouco feliz, uma espécie de Thoreau a viver numa cabana na natureza, leitor de Dostoiévski, Nietzsche, Norman Mailer. Ele sabe, também como Kushner, que talvez “quando não se passou pela infância de outra pessoa não seja possível julgá-la no mesmo plano moral.”

O processo

Rachel Kushner demorou seis anos a escrever este livro, entrou em prisões como voluntária, falou com reclusas, guardas, advogados, mas não gosta de aplicar a palavra pesquisa ao processo. “Eu estava a fazer voluntariado com uma organização de direitos humanos chamada Justice Now. Eles tentam documentar e prevenir o abuso de violação dos direitos humanos nas prisões da Califórnia com foco em pessoas a cumprir penas vitalícias. Isso permitiu conhecer muita gente com quem mantenho contacto. Nunca tomei notas quando falava com as pessoas. Ouvia-as. E não incluí histórias das suas vidas. A minha ideia ia além do romance; queria tentar aprender o mais que pudesse sobre o sistema criminal e judicial, não para escrever um livro, mas porque senti que era o tempo para o fazer. Isso implicava não apenas aprender acerca do sistema judicial, mas mudar a minha vida, incluir aquelas pessoas que tivessem sido tornadas invisíveis nos dias de hoje. Eu queria que a minha vida os incluísse. Isso continua, é um projecto que tem que ver com o modo como vivo mais do que com o que escrevo”, salienta Rachel, que se deu conta de outra coisa: as mulheres, enquanto reclusas, são mais invisíveis dos que os homens.  

Quando se fala deste assunto, faz uma pausa como se estivesse a pensar nele pela primeira vez. Qual a razão pela qual se fala menos de prisões femininas? “Isso é muito interessante. Misoginia? Realmente não sei, mas seria estranho excluir essa possibilidade. Talvez ironicamente seja por as pessoas não estarem interessadas nas vidas das mulheres, mas também há menos mulheres nas prisões. Os homens são a esmagadora maioria nas prisões da Califórnia, mas a prisão de mulheres aonde vou mais tem quatro mil reclusas, é a maior no mundo. As prisões de homens na Califórnia são terríveis, mas as mulheres são marginalizas de modos tão extraordinários... Por exemplo, ninguém as vai visitar. Quando se vai a uma prisão de homens em Central Valley, encontram-se movimentos de protesto das populações locais; não querem que um determinado tipo de família vá à cidade visitar os homens na prisão. As visitas são vistas como desvio de classe — e com isto não quero dizer que as pessoas do Central Valley sejam ricas, porque não são —, surgem como ameaça.” 

Falou com muitas mulheres, e os sentimentos em relação a esse abandono são diferentes. “Não gosto de generalizar, mas os homens são tratados como monstros e, como consequência, comportam-se enquanto tal. Tem que ver com lógicas institucionais enraizadas acerca de como os seus corpos são controlados. As mulheres são tratadas como bebés. São infantilizadas, crianças que se tornam selvagens e fazem birras e estão sempre a queixar-se e choram. São olhadas como crianças pequenas, como incrivelmente manipuladoras e fracas.”

Romy Hall vive entre elas, como elas. Vamos sabendo dela pela sua narrativa, o olhar sobre o seu passado, mas a voz dela cruza-se com outras que habitam a mesma rede. Social, prisional. É dela a voz principal. Mas há as vozes das outras e a de Doc, e a de Gordon. E, nisso tudo, um mergulho profundo no íntimo de cada personagem.

“Queria escrever o romance na primeira pessoa, mas foi difícil chegar lá, ficar só lá, porque nunca fui presa, porque pertenço à classe média. Não há pessoas de classe média naquelas prisões”, afirma, confessando que andou perdida.

“Sabia que ela precisava de ser realmente culpada, mas é o que a maior parte das pessoas na prisão são; partilham a ideia de que estão lá por qualquer coisa. Eu queria que ela fosse alguém de quem me sentisse próxima, e que tivesse feito qualquer coisa que não explicasse tudo. Ao mesmo tempo em que pensava neste livro e nessa mulher, escrevia passagens sobre a minha adolescência em São Francisco. Um amigo com quem cresci esteve na prisão durante muito tempo e morreu lá. Comecei a pensar nisso, a conversar com velhos amigos acerca do que aconteceu ao nosso amigo e a pensar em todas as pessoas com quem cresci que não foram parar à prisão mas que se perderam em vidas que se tornaram mais negras do que a minha. Narrei um pouco esta realidade próxima de mim e atribuía-a a Romy e percebi que era a minha forma de entrar numa personagem à qual queria estar intimamente ligada. Se não tivesse feito isso, não teria conseguido a profundidade e a raiva de que precisava para lhe dar um corpo e uma voz.”

O político e o artístico

A acção central é a história de Romy e do que lhe acontece. Romy, a condenada, trabalhadora do clube em São Francisco que dá título ao romance, O Quarto de Marte, mulher de quem apenas conhecemos os traços físicos já o romance vai longo. “... ela era atraente, apesar das condições. Olhos verdes muito afastados um do outro. Os lábios formando um arco de Cupido, como se lhes chamava, com o lábio superior subindo e descendo. Uma boca bonita que dizia: confia neste rosto. E o rosto dizia: isto não é o que parece.” A descrição é de Gordon, o professor que começa a gostar dela apesar de todas as interdições e a quem ela vai pedindo o que pode para ter informações do filho. Ele resiste. Vai resistindo. “Ela é a coluna vertebral do livro e tudo se fecha nela”, refere Kushner.

O livro começa com a sua condenação e termina com o desejo, também dela, de atingir algum sentido para a sua vida que não pode ser determinado pelo Estado.

“Para mim, tem mais acção do que qualquer outro livro que tenha escrito”, ri Kushner, reagindo à acusação de alguns críticos de que falta enredo a O Quarto de Marte. “E é também mais livre, em parte por causa do tom. Ouço Romy a falar como que a partir de uma urgência de testemunho. Mas há outras personagens que me interessam, toda aquela paisagem de pessoas circunscritas a uma rede prisional, a viver numa zona penal, ou a trabalhar nesse mundo.” E está lá o modo como Gordon entra e sai da prisão, quase tão relevante no que revela de impressão sobre o mundo prisional como as vidas das pessoas fechadas nele. E há a paisagem rural industrial, com toda a sua desestruturação social, ou as ruas de Los Angeles da memória de Doc. A vitalidade do romance vive dessa e de outras ambiguidades e da percepção que Kushner sintetiza desse modo: “As prisões são estruturadas como fábricas mas não produzem lucro. Há quem pense que sim, mas é um mito. São muito caras. No entanto, fabricam um produto: a incapacitação das pessoas dentro dessa fábrica.”

A acção principal decorre de  2003, o ano da invasão do Iraque, a meados de 2008. Com isso, é difícil fugir ao epíteto de romance político. Kushner resiste. “Interessa-me muito mais a literatura do que a política. Talvez seja muito político no sentido em que também se pode considerar muito ideológico escrever um romance que pretenda não ter política. Ou seja, a ideia de que não há nada de político num romance é em si mesma bastante política. Negar que as pessoas sejam um produto de pensamento sobre Poder. Tento não negar essas coisas, mas não vejo o meu projecto como político. O meu projecto é artístico. Se fosse político, escreveria não-ficção. As minhas preocupações são estéticas e muitas vezes conduzidas para encontrar uma verdade poética e um encontro com o meu inconsciente, ver o que é produzido lá.”

O Quarto de Marte é Rachel Kushner no seu tempo. Com ela, o leitor viaja de um território vasto até outro, limitado. “Às pessoas dentro das prisões não lhes chega nada do mundo exterior. Em especial nas prisões de mulheres: vivem num ambiente aterrorizador e melodramático. Não são moldadas pelo que acontece no mundo lá fora”, sublinha, para dizer que, no entanto, em certos pontos é preciso dar notas sobre esse exterior.

“Em parte porque aquilo não acontece sem História. E a História conta que naquele momento a Califórnia investiu no maior edifício prisional do mundo. Esse é o marco. E as invasões do Iraque e do Afeganistão, com as histórias desse tempo. Vejo as obsessões das pessoas acerca do que se passa agora e é como se se tivessem esquecido de como foi aquela altura, a devastação que causou, o que provocou a longo prazo, níveis de migração históricos, gente sem casa no Iraque, Afeganistão, Síria, Líbia. Isso aparece aqui e ali no livro porque Gordon leu as mesmas coisas que li. Não quis produzir uma mensagem sobre isso, mas dizer que o livro aconteceu num tempo em que era essa a narrativa.”

Deus

Rachel nunca é Romy, porque não pode ser. Mas quis ser íntima dela e para isso Gordon foi essencial. Às vezes Rachel é Gordon. Os dois sem um Deus, à procura de uma verdade que os ajude a salvarem-se de tanto negrume. Ela, como ele, encontrou esse entremeio divino na literatura e não na religião.

“Pensei muito em religião enquanto escrevia. Sobretudo sobre cristianismo. Como alguém criada fora desse mundo sinto falta dele na minha vida quando tento captar realidades dolorosas. Ao pensar nas pessoas fechadas em prisões, que é suposto morrerem lá, que têm uma sentença para a vida sem possibilidade de fuga... Algumas praticaram acções complicadas. É perturbador. Agora estou bem com isso, quis entrar nas suas vidas sem os julgar, mas quando não se tem religião ou um Deus e se vai até ao mais negro do universo humano, é difícil. E talvez, no lugar delas, fosse mais difícil para mim porque não tenho essa rede. A estrutura do cristianismo inclui misericórdia, compaixão e redenção, mas o sistema de justiça não. Isso perturbou-me. Ao reler Dostoiévski senti-me melhor. Estou convencida de que ele tinha Deus, no sentido em que lhe permitiu ir aos recantos mais negros do ser humano.”

Também Gordon se refugia no Deus alternativo que Dostoiévski fornece. O escritor respondia às “suas melancólicas dúvidas”. A análise é de Gordon, podia ser de Kushner. “Dostoiévski não acreditava em nada a não ser no mundo untuoso e terra-a-terra onde os seres humanos vagueavam, lutavam, corrompiam e matavam. Mas Dostoiévski era cristão, e as pessoas que lutavam e vagueavam nos seus romances haviam perdido o seu caminho, ao passo que Deus não. Dostoiévski era algo vasto — de dimensão universal —, um universo que possuía uma ordem, mas não uma ordem fixa e artificial como a dos gregos. Era um difuso reino de caóticas provações, e Gordon sabia que quando o lia penetrava no território de verdade.”

Suportá-la era outra coisa. Romy não sabia de Dostoiévski nem de Nietzsche, mas sabia dos seus limites pessoais. Não era intelectualmente curiosa, nunca quis saber quem era a actriz alemã que lhe inspirou o nome e introduziu o espectro, a sombra, o fantasma da tragédia na sua vida. Kushner enfatiza essa tragédia com o humor. “Era preciso chegar à vitalidade daquela gente e essa vitalidade tem de se alimentar de humor. É uma forma de resistência. Pode ser preguiçoso escrever apenas focado na tristeza. Isso é excluir verdade. Há muita gente a forçar a ficção em função dos seus objectivos, como, por exemplo, pintar o cenário mais negro.”

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