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E as princesas viveram infelizes para sempre

Felizmente, a maior parte da população portuguesa está-se nas tintas para quem acha que chamar “princesa” a uma filha é o primeiro passo para uma vida de opressão social, e continua a fazer e dizer o que bem entende.

No famoso vídeo da campanha “Uma princesa não fuma” há duas mulheres. Uma – a mãe – está a morrer de cancro. A outra – a filha – é chamada de princesa. Houve gente que olhou para o vídeo e concluiu que a vítima era a filha. Se o trabalho da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género fosse pugnar pela igualdade entre os vegetais, ela ter-se-ia indignado muito com a bomba de Hiroshima face à discriminação da beringela relativamente ao cogumelo. O destrambelhamento da franja mais radical do feminismo contemporâneo não cessa de me espantar.

Nada é mais estúpido (ai, ai, usei a palavra “estúpido” – será que estou a chamar estúpidas às mulheres?) do que transformar a luta justa pela igualdade das mulheres (ai, ai, sou um homem que insinua saber qual é a luta justa das mulheres – será que estou a praticar mansplaining?) numa histeria (ai, ai, usei a palavra “histeria” – será que estou a chamar histéricas às mulheres?) de micro-indignações, confundindo mudança de mentalidades com um policiamento obsessivo da linguagem, que torna impossível escrever uma frase sem ofender alguém.

Tenho amigos sábios que tendem a desvalorizar estas breves erupções de indignação, bastante circunscritas ao mundinho elitista das redes sociais lisboetas, como quem desvaloriza o aparecimento de mais uma borbulha no nariz de um adolescente. Admito que haja uma certa sageza nessa atitude. Felizmente, a maior parte da população portuguesa está-se nas tintas para quem acha que chamar “princesa” a uma filha é o primeiro passo para uma vida de opressão social, e continua a fazer e dizer o que bem entende, sem ter uma porteira das Capazes na ponta da língua a decidir que palavras podem sair à rua.

No entanto, esta pequena elite que pratica o ultra-feminismo semântico não pode ser menosprezada, porque tem uma influência significativa junto do poder político. O clube de Isabel Moreira, da CIG, das Capazes, mais respectivos amigos e amigas, tem uma presença parlamentar e mediática de peso, e está sustentada numa poderosa moda internacional que passa os dias em universidades e jornais a colocar cordões sanitários à volta do vocabulário de cada um, com o mesmo desvelo com que a Santa Inquisição escrutinava os sussurros dos cristãos-novos.

Até Miguel Esteves Cardoso, em tempos um farol do conservadorismo português, decidiu aderir à onda progressista, e num texto intitulado “Abaixo os princeses” escreveu isto: “Quantas vezes se diz a um menino ‘Olá, príncipe, estás tão bonito’? Pois é. O mal de chamar princesas às meninas é precisamente o facto de estar tão generalizado. Quase toda a gente diz. É por isso é que existe a CIG, para nos emendar a mão.” Ora, logo por azar, a mulher com quem me casei diz com frequência aos nossos filhos: “Olá, príncipe, estás tão bonito.” Só que também essa frase pode soar mal, se quisermos muito.

Porque o problema está nas orelhas: se eu chamar “princesa” a uma filha estou a perpetuar estereótipos que a obrigam a ser bonita e gostar de cor-de-rosa; se eu chamar “príncipe” a um filho estou a perpetuar estereótipos que o obrigam a ser poderoso e a gostar de mandar nos outros. De uma maneira ou de outra, estou a perpetuar estereótipos, porque tudo pode ser ofensivo e estereotipado quando retiramos o bom-senso e o sentido das proporções de uma conversa. Estar sempre a falar nisto é muito aborrecido, eu sei. Só que tem de ser. A CIG até pode existir para “emendar a mão”. Mas na minha língua ela não toca.

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