A banha da cobra e outras ilusões
A aposta em indicadores de classificação abrangente que meçam adequadamente o bem-estar é um esforço que vale a pena.
Apesar de existir uma semelhança entre os termos "desenvolvimento económico" e "crescimento económico", estes dois conceitos referem-se a realidades diferentes e muitas vezes não se acompanham nas suas trajetórias e com a mesma intensidade. É o que tem acontecido no nosso país desde 1985, podendo já catalogar esta situação como uma tendência negativa de longo prazo.
O crescimento económico normalmente é medido pelo Produto Interno Bruto e serve para formular políticas macroeconómicas nos últimos 80 anos. Desde que Simon Kuznets, na década de trinta do século passado, inventou a Contabilidade Nacional e o PIB, estranhamente pouco tem sido feito no sentido de se ir mais além.
O crescimento económico apenas contabiliza a criação de riqueza, não a forma como ela se distribui, nem o bem-estar que ela proporciona. Por estes motivos, ao longo dos anos, por diversas vezes, o uso do PIB como referência normativa para o desempenho económico e social tem sido posto em causa por diversos economistas. O bem-estar nunca poderá ser só medido pelo PIB. Este é útil apenas pela sua simplicidade de cálculo e de interpretação. É um indicador pouco claro e limitado, dado que não garante a correta interpretação do progresso social, institucional, de bem-estar e de desenvolvimento.
O desenvolvimento económico, além de contemplar o crescimento económico, mede esse crescimento incorporando entre outros fatores a qualidade de vida e o sistema social em geral, existindo atualmente diversos indicadores que nos permitem conclusões mais assertivas. Apesar de o PIB ser um indicador importante, a sua interpretação deve ser acompanhada de outros e não procurar “embandeirar em arco” apenas o crescimento, esquecendo, quem sabe propositadamente, por exemplo o desenvolvimento económico, ou seja, a repercussão desse crescimento na qualidade de vida das pessoas.
Esta repercussão pode ser verificada através de diversos indicadores como o Coeficiente de Gini, Índice de Desenvolvimento Humano, entre outros, que evidenciam a evolução das desigualdades e o desenvolvimento de um país. Um indicador muito importante e elucidativo é o Índice de Bem-estar Económico Sustentável (ISEW), que ao longo do tempo tem sofrido algumas alterações na sua composição para incorporar novas tendências e novas formas de pensar. Mas existem outros indicadores que poderiam ser considerados e utilizados.
A grande vantagem deste indicador é que o mesmo parte do consumo privado em vez de partir do produto total e incorporar cerca de 20 variáveis, sendo algumas delas de extrema importância para o cálculo do bem-estar das populações, das quais destacamos a desigualdade na distribuição do rendimento, o trabalho doméstico, a depreciação dos bens duradouros e a melhoria dos cuidados de saúde e de educação. Ao consumo privado são somados ou subtraídos valores das variáveis, consoante constituam ou não benefícios ou custos sociais. Aqui reside o mérito deste índice em relação ao Produto Interno Bruto.
É amplamente aceite pela comunidade científica que o PIB é um mau indicador para medir o desenvolvimento sustentável, a sustentabilidade e o bem-estar humano e económico. Apesar disso, continua sempre a ser utilizado.
Os poucos estudos aplicados a Portugal para o cálculo deste índice concluem que até 1984 o PIB per capita e o Índice de Bem-estar Económico Sustentável per capita mantinham uma trajetória mais ou menos conjunta. A partir desse ano e até aos dias de hoje, a divergência não para de aumentar. Apesar de o PIB per capita apresentar tradicionalmente taxas de crescimento baixas (ou mesmo negativas), o crescimento do ISEW per capita ainda é menor. Assim, existe um afastamento gradual deste indicador em relação ao crescimento económico.
Já em 2007-2008, a Comissão Europeia apelou ao desenvolvimento e uso de indicadores que ajustem, complementem ou substituam o PIB. Chegou a ser produzido o célebre Relatório Stiglitz-Sen-Fitoussi, que enfoca a qualidade de vida, o desenvolvimento sustentável e a sustentabilidade. Também a OCDE tomou iniciativas nesse sentido. Os indicadores, entretanto, foram desenvolvidos; a sua utilização, talvez por questões políticas, é que ainda não foi disseminada.
Qual o político que pretende transmitir aos seus eleitores que, apesar de o seu país, em termos globais, estar a crescer, esse crescimento não provoca bem-estar para todos de uma forma igual? Que as assimetrias económicas e sociais aumentam ou que, com o discurso do crescimento económico do país sem ir ao fundo da questão, anda a vender a banha da cobra ou outro tipo de ilusões? Não me parece que isso traga votos ou popularidade, portanto o melhor é assobiar para o lado. Não pensem que o tradicional vendedor da banha da cobra desapareceu, apenas se sofisticou, talvez pelos efeitos da globalização ou das modernas técnicas de marketing. Já não vende na feira. Tem formas mais sofisticadas de passar a sua mensagem. Isto, infelizmente, passa-se um pouco por todo o mundo. A falta de um correto escrutínio provoca uma machadada em qualquer democracia.
A aposta em indicadores de classificação abrangente que meçam adequadamente o bem-estar é um esforço que vale a pena, pois promove a visualização imediata das medidas políticas que deverão ser efetivamente consideradas.
Se os indicadores existentes não servem, reúnam-se equipas multidisciplinares para conceptualizar novos, quer quantitativos quer qualitativos, dotando assim de uma maior solidez e robustez esses indicadores. Não podemos é ficar reféns do PIB e reféns de informações enviesadas.
A bem de todos, vale a pena pensarmos nisto.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico