Há um Al Berto anterior à mitologia da solidão
Surpreendente “encontro” com o poeta, com a sua transgressão em relação à moral sexual dominante e às distinções construídas entre feminino e masculino. Al Berto era um dos amigos próximos de Sophie Podolski, artista cujo trabalho está a ser redescoberto em Paris.
Na capa da primeira edição de Lunário (1988), uma fotografia revelava três personagens num jogo de reflexos com um espelho, que é sobretudo um intercâmbio de identidades. Lá está o culto da androginia: Al Berto surge irreconhecível, de cabelos compridos, travestido e maquilhado de negro, enquanto a italiana Olimpia Hruska, de óculos escuros, lembra Jimmy Hendrix, e ambos estão acompanhados de um jovem loiro, provável “pastor adolescente que me ensinará/a rápida vertigem da noite” (O Medo). A foto de capa foi uma declaração de guerra num meio literário pouco dado a estas extravagâncias, aproximando-o de uma prática de auto-representação mais recorrente no rock. A transferência das identidades no espelho prolonga-se no interior do livro, um dos raros em prosa de Al Berto, inspirado no período que viveu em Bruxelas. Al Berto exilou-se nesta cidade em Abril de 1967, com 19 anos, para evitar o serviço militar e a guerra colonial, e a foto foi realizada na comunidade de artistas em que vivia, Montfaucon Research Center. As três personagens de Lunário — Beno, Alaíno e Zohía, cada qual ainda designado por outros nomes — não são as representadas na capa, mas provavelmente uma hibridação do autor com outros dois artistas membros desta comunidade: Dodo e Sophie Podolski.
Os textos e desenhos de Sophie Podolski estão a ser objecto de uma redescoberta inesperada, através de Le pays où tout est permis, exposição no Wiels, o mais importante centro de arte contemporânea de Bruxelas, que viaja agora até à Villa Vassilieff em Paris. Local importante das vanguardas do início do século XX, o antigo atelier de Marie Vassilieff no Bairro de Montparnasse reunia Picasso, Fernand Léger, Chagall ou Modigliani no início do século passado, mas conseguiu escapar à museificação turística para se tornar numa das melhores residências de artistas e curadores estrangeiros da cidade. O objectivo deste centro parisiense é estabelecer uma releitura da história da arte contemporânea, abrindo-a às novas perspectivas criadas pelos debates em torno do feminismo e da descolonização que estão a varrer o meio artístico com a força de um ciclone. Para os visitantes portugueses será então uma surpresa depararem-se na exposição com o filme de Joëlle de la Casinière, Dans la Maison, em que Sophie Podolski aparece constantemente ao lado de um dos seus mais próximos amigos, Alberto Raposo Pidwell Tavares, nome anterior à metamorfose como Al Berto.
“Senti necessidade de abrir a brecha com uma coisa que era muito minha e abri o nome ao meio, uma cisão num determinado percurso. Foi a maneira de não esquecer esse abismo. Depois, Al Berto, dito à francesa, Al Bertô, é mesmo árabe e significa ‘anónimo’. E há qualquer coisa no anonimato que me seduz”, explicou o escritor numa entrevista ao Diário Popular, em 1987. Numa altura em que se comemoram os 50 anos da revolta de Maio de 1968, vividas intensamente por Al Berto na La Cambre, a escola de artes de Bruxelas que ajudou a ocupar nesses dois meses de brasa, torna-se assim fundamental revisitar um dos seus períodos mais solares, experimentais e emancipadores, em que germinaram questões que estão a encontrar ressonância numa nova geração de artistas e investigadores. Ao jornal Litoral Alentejano, em 1993, evocava: “A minha saída de Portugal teve a ver com a Guerra Colonial. Estava fora de questão pegar em armas para matar alguém. A opção de ir para a Bélgica relacionou-se com o facto de existir lá a sede da ONU, era mais fácil obter o estatuto de refugiado político, documentação para frequentar as universidades. Foi, como se sabe, uma grande época de agitação social, política e cultural. (...) Vivia-se na altura em permanente vertigem. Por qualquer razão que não era muito consciente, senti que deveria registar num diário tudo o que estava acontecendo na altura. Como a pintura e muito mais demorada de executar, requer outros meios, mais caros, à escrita basta o papel e caneta, começou assim a minha mudança para a literatura”.
É no meio dessa agitação que Al Berto encontra uma outra artista na escola de artes, Joëlle de la Casinière, companheira de Michel Bonnemaison, na altura alto funcionário na Comunidade Europeia, que decide alugar um prédio em 1969 no bairro de Ixelles, Rue de L'Aurore nº 25 (na mesma rua onde nasceu e cresceu a cineasta Agnès Varda até aos 12 anos), para, juntamente com outros artistas, a transformar numa comunidade, o Montfaucon Research Center, inspirado no nome de uma forca em Paris onde foi condenado o poeta François Villon, conhecido no final da Idade Média por frequentar príncipes e bandidos de rua. Do ponto de vista das discussões estéticas, aquilo que os reunia era um desejo de unir o desenho à escrita (realizados com o mesmo utensílio), numa espécie de poesia gráfica, com o objectivo de editar em livro os artistas da comunidade.
A performance dos comportamentos
“Montfaucon era um espaço de total liberdade, movido antes de tudo pela vontade de viver intensamente, recusando liminarmente a dependência da arte em relação ao mercado”, lembra-se Joëlle de la Casinière numa conversa com o Ípsilon. “A vivência na casa era totalmente experimental, apenas os ateliers eram locais atribuídos a cada artista, não havia espaços privados específicos, cada um dormia onde podia e com quem queria, muitas vezes em grupo. Considerámos que não é possível possuir uma pessoa, o amor era entendido como algo colectivo, o que sempre primou foi uma alegria de viver irreprimível. Na casa podíamos estar cinco ou 20, dependendo das passagens de músicos ou artistas (muitas vezes em transito para a Índia), e fazíamos grandes jantares colectivos, porque rapidamente se ouviu falar de Montfaucon num certo circuito”.
“Al Berto ocupava o sótão da casa e fazia pintura monumental de inspiração pop, com referências à banda desenhada — nós adorávamos o estilo transgressivo do belga Guy Peellaert, por exemplo — contaminado por referências à música da época (Velvet Underground, The Stooges, The Who, Rolling Stones, Soft Machine, Jimmy Hendrix ou The Doors) em que ele evidenciava o carácter andrógino e a ambiguidade sexual das personagens. A música estava sempre muito presente na casa e Al Berto nunca acordava antes das cinco da tarde, trabalhava de noite e saía à deriva na cidade com o artista português Dodo, passando pelos clubes psicadélicos de Bruxelas, o Smog et o Thalamus. Dodo também era uma personagem completamente à frente da época, talvez ainda mais queer, com uma ousadia imensa na maneira de confundir os géneros”.
A transgressão do poeta português em relação à moral sexual dominante e às distinções construídas socialmente entre o feminino e o masculino são claramente visionárias nesta época, muito antes dos textos fundamentais da desconstrução das identidades de género teorizadas por autores como Judith Butler em Problemas de Género. Recusando uma qualquer essência justificada pela “natureza”, punha em evidência o carácter performático dos comportamentos, adquiridos através da repetição e regulados pela violência social que garante a manutenção da diferença binária. Ora, segundo Joëlle de la Casinière, Al Berto nunca teve medo de afirmar socialmente uma identidade vivida enquanto performance, experimentando práticas sexuais consideradas minoritárias. Desde a exposição final do curso de artes na La Cambre, causou escândalo com uma exposição na qual se esperava que mostrasse pintura monumental (curso onde estava inscrito) para, em vez disso, forrar totalmente a sala a papel de prata, expondo unicamente polaroids consideradas pornográficas, com encenações masculinas. A ousadia e a quebra de tabus eram a palavra de ordem.
“Al Berto respirava uma felicidade emancipadora e estava-se nas tintas para o diploma, era como recusar a Legião de Honra. Nós víamos os filmes do Andy Warhol na Cinemateca, com aquela fauna de personagens fora das categorias normativas, e o Al Berto era um leitor atento do William Burroughs”, lembra ainda Joelle.
No Lunário, escreve ele: “Deixara, assim, crescer o cabelo, experimentara novos gestos diante dos espelhos, e através das noites de insónia fora-se tornando irreconhecível, estranho. A pouco e pouco conhecera o cansaço da metamorfose que provoca vertigens e revela um olhar mais azul, quase ausente, líquido e marinho. E comovera-se ao sentir a alegria magoada de quem descobre um outro ser, andrógino e belo, no fundo de si.”
A chegada à comunidade da jovem artista Sophie Podolski teve o efeito de um terramoto, “era como se de repente o Rimbaud chegasse a tua casa”, lembra Joelle, estabelecendo rapidamente relações intelectuais, afectivas e sexuais com homens e mulheres, tornando-se uma excepcional amiga do Al Berto. “E uma noite, deitados, Beno dissera que lhe era completamente indiferente que a pessoa com quem partilhasse sentimentos, ou emoções, fosse deste ou daquele sexo. (...) A ‘moral’ era uma treta que não lhe dizia respeito. Era-lhe alheia, pura e simplesmente alheia. O que sempre o fascinara e seduzira era o amor, a amizade e a paixão que cada ser pode dar como um dom, e receber como uma dádiva. Sobretudo, era a qualidade intemporal dos sentimentos e dos prazeres que o atraíam, e isto nada tinha certamente a ver com este ou aquele sexo. A única condição que exigira dos outros e de si mesmo fora a disponibilidade. E nessa disponibilidade encontrava a preciosa diferença que cada ser lhe inspirava. Talvez por tudo isto ser claro entre eles, nunca tiveram ciúmes. Tanto Alba como Beno achavam que o ciúme era coisa para os néscios se entreterem”, escreveu Al Berto no Lunário.
Uma metodologia freak
O trabalho da Sophie Podolski, realizado em apenas seis anos (suicida-se em 1974, antes de chegar à idade adulta legal, que na época era de 21 anos), foi rapidamente saudado pelas vanguardas parisienses, encarnadas pela revista Tel Quel (que reunia escritores e filósofos como Philippe Sollers, Julia Kristeva ou Roland Barthes) que referenciavam o carácter inovador da hibridação texto-desenho do seu único livro, rapidamente tornado culto (O País Onde Tudo É Permitido, 1972). O escritor chileno Roberto Bolaño cita Sophie Podolski em pelo menos cinco livros, evocando o seu "país do nada e da metamorfose lunar". Em Os Detectives Selvagens, fala dela como um desses autores de culto, tendo sido muito amados mas cujos livros terminam esgotados e esquecidos. Bolaño dispersou assim o nome da autora e da comunidade de Montfaucon como rastos para a curiosidade e o desespero dos arqueólogosselvagens do futuro. Por seu lado o filosofo Gilles Deleuze faz uma referência à comunidade de Montfaucon em Mil Planaltos e convence a editora Minuit, célebre pela sua exigência, a publicar Joelle de la Casinière. Al Berto publicou em 1970 um primeiro livro de poesia gráfica, Projectos 69, nas edições da Montfaucon (reeditado em 2002 pela Assírio e Alvim). A revista da esquerda francesa Nouvel Observateur consagra um artigo de várias páginas à comunidade de Montfaucon, em que estes declaram: “Temos muita estima pela família crítica parisiense, Kristeva, Barthes, Derrida, etc. Mas, dito isto, sentindo-nos mais à vontade a serrar tábuas com um lenhador no Canadá. (...) Somos alérgicos à teorização, aquilo que nos parece importante são os afectos, como o que reúne a Joelle e a Sophie quando elas escrevem os seus livros sentadas à mesma mesa”.
A revista francesa Actuel, paradigma da contracultura hippie destes anos, encomendou vários textos aos membros da comunidade, e Joelle lembra-se, por entre gargalhadas, da tentativa que fez com Al Berto e Dodo de uma reportagem nunca terminada sobre a prostituição numa viagem a Barcelona em 1971, explorando um desejo comum pela transgressão. Embora associados às sequelas do movimento hippie, Sophie Podolski identificava-se como freak, o que ecoa com um livro actual que está a ter ressonância fortíssima no meio parisiense: Art Queer: Une Théorie Freak da artista e teórica Renate Lorenz. Reactiva esta designação, carregada de uma história de humilhação e desprezo, mas também de auto-emancipação, dança e recusa da eficacidade. “São corpos que desnormalizam as práticas sociais, corpos que se interessam pelo que é considerado grotesco e abjecto, corpos que desenvolvem outro tipo de produtividade, não reprodutiva”, afirma a autora. Propondo uma metodologia freak, constrói a figura do “drag radical” que abre novas subjectividades relacionais, ultrapassando a questão do travestimento, para imaginar alternativas às relações de poder.
O percurso do Al Berto em Bruxelas inscreve-se nesta lógica. Em 1972, sai de Montfaucon, pressentindo o final da aventura, para criar outra comunidade fora de Bruxelas, com Dodo e Any Masquilier (que mantiveram uma relação amorosa original) e outros artistas, num palacete da família de um deles, o Centre Culturel de Hainaut, em Vaulx, perto de Tournai. Desde a sua chegada a Sines em 1975 — onde ainda criou outra comunidade no Palácio Pidwell, que pertencia à avó — que as sombras começaram a recobrir este lado solar do período belga. A imprensa portuguesa tratava por metáforas a sexualidade do autor, mas é a forma performática como ele e os artistas do Montfaucon Research Center entendiam a identidade, considerados como uma arqueologia das práticas queer, que encontra hoje um eco central nos debates artísticos em Paris.
A reedição de Lunário pela Assírio e Alvim já tinha uma capa mais aceitável para a mitologia das letras portuguesas, um Al Berto jovem mas lembrando Rimbaud, o que seria reforçado, aliás, com a célebre foto do Paulo Nozolino, o corpo crístico de O Medo. “Perdoa-me, perdoa-me a falta de forças, o cansaço, os meus quarenta anos, a pouca esperança e nenhuma alegria”, escreve Al Berto no Lunário à sua personagem da juventude. A narrativa da solidão irredimível podia então começar.