A Europa não é feita de “culturas”, umas melhores do que as outras
Há alguma coisa de profundo, uma ponta de angústia, que nos faz olhar para o futuro da Europa com grande preocupação.
1. Nos dias que correm escrever sobre o que se passa no mundo tornou-se um exercício arriscado. Os exemplos são muitos. Apenas os mais recentes. Num dia, elaboramos sobre a rejeição da coligação entre a Liga e o Cinco Estrelas pelo Presidente Matarella, por causa de um ministro das Finanças excessivamente eurocéptico. No outro, vemos o primeiro governo da Europa Ocidental resultante de uma coligação entre populistas e extrema-direita tomar posse em Roma. Os dois partidos têm sérias reservas contra o euro e a União Europeia e o seu programa eleitoral prevê a expulsão maciça de imigrantes ilegais (500 mil). Alargando horizontes, num dia temos de escrever sobre a decisão inesperada de Trump de cancelar a cimeira com o seu homólogo norte-coreano para, quinze dias depois, vê-lo anunciar que a cimeira está marcada para o mesmo dia e o mesmo local. A imprevisibilidade da Casa Branca começa a parecer-se com uma “estratégia”. Os europeus não estão preparados para ela.
2. Na Europa, a Itália é uma espécie de “lugar geométrico” do que pode vir a acontecer, fruto das consequências políticas de uma crise existencial que dura há demasiado tempo e que deixou marcas profundas. Já se disse quase tudo. Do peso da Itália na economia e na política europeia, às nuvens negras que se voltam a adensar sobre o euro. Não há que ter ilusões sobre as intenções do novo governo italiano e sobre quem está a beneficiar mais com a crise profunda dos partidos do sistema. Matteo Salvini é o grande vencedor. O seu partido é de extrema-direita, idêntico à Frente Nacional francesa, a mesma que pregou um enorme susto à Europa há apenas um ano, mas com o qual a Europa aprendeu pouco. O discurso oficial de Bruxelas é simples: a Itália tem de cumprir, como os outros, a regras do euro. O que é verdade. A União Europeia assenta na “partilha de soberania”, garantida por regras comuns. Sem esse compromisso livremente aceite, a integração europeia, pura e simplesmente, não existiria. Mas o problema já não é esse. E é a resposta política que falta à Europa para contrapor aos seus detractores, que diga alguma coisa aos europeus no seu conjunto e não apenas aos alemães ou aos holandeses.
3. A Espanha é outro caso, que não tem nada a ver com o italiano. O líder do PSOE, Pedro Sánchez, aproveitou uma conjuntura particular para derrubar o PP e tomar conta do Governo. Deixo de lado a conjuntura política e as transformações do sistema partidário espanhol. O essencial é que PP, PSOE e Cidadãos são partidos defensores da democracia liberal e da Europa, que não há um movimento xenófobo anti-imigrantes em Espanha (a Península Ibérica fica bastante bem nesta fotografia), que as contas públicas estão em ordem e a economia a crescer. O problema dos nacionalismos, exacerbado pela Catalunha, não quebrou a unidade entre PP, PSOE e Cidadãos.
4. Mas há alguma coisa de mais profundo, uma ponta de angústia, que nos faz olhar para o futuro da Europa com grande preocupação. A crise italiana provocou reacções intempestivas e desnecessárias em Bruxelas. Mas nada é comparável a algumas reacções a que assistimos na Alemanha. A forma como a prestigiada Der Spiegel reagiu ao que aconteceu em Roma provoca uma profunda inquietação. A fotografia escolhida é a de uma baía na maravilhosa Costa Amalfitana de Itália. A prova do delito são os iates ancorados junto à praia. As palavras sintetizam a mensagem: os “parasitas” italianos são “pobres e mal-agradecidos”. Ou seja, são pobres e compram iates à nossa custa.
A Itália não é um país pobre. A região de Milão é, ainda hoje, uma das mais ricas da Europa. A sul de Nápoles mantêm-se níveis de rendimento mais baixos e uma corrupção endémica, mas o país continua na média da riqueza europeia. Roma é, porventura, a cidade mais fascinante do mundo, onde ninguém respeita o sentido do trânsito mas não há acidentes. A Via Condotti é território reservado a chineses, japoneses, árabes, americanos, que valorizam tanto um fato italiano como um BMW. A Itália recebe fundos europeus, sobretudo para a sua agricultura, cujas marcas ainda são sinónimos de qualidade mundial, tal como a agricultura alemã recebe, já para não falar da francesa. A economia italiana tem um sério problema de competitividade porque não conseguiu adaptar um modelo que era dinâmico às novas condições da globalização. A elite política desprestigiou-se totalmente aos olhos de uma maioria de eleitores. Berlusconi já foi um sintoma. Mas convém recordar duas coisas: ao longo dos anos de crise, só num ano a Itália teve um saldo orçamental primário negativo. A dívida é enorme, mas está, numa parte significativa, em mãos de italianos.
O diário económico alemão Handelsblatt, conservador, publicava a 30 de Maio um artigo do seu correspondente em Roma com o seguinte título: “Nós, alemães, devíamos parar de nos armarmos em superiores perante a Itália”. “Como na Itália, a paisagem política alemã está fragmentada (…). A Alemanha deixou de ser um oásis de estabilidade.” O jornalista considera que Berlim não tem sido um bom “capitão” para a frota europeia, deixando muitos barcos à deriva à primeira tempestade. “As pessoas, na Grécia, Espanha, Portugal e na Itália não gostam de andar pela trela. Ninguém gosta de andar com trela.” Quando a crise da dívida colocou o euro à beira do precipício, Angela Merkel não reagiu da melhor maneira. Agarrou-se à cláusula de no bailout de Maastricht e declarou que não tencionava pagar a dívida dos outros. Deitou achas na fogueira. Não contrariou o discurso “punitivo” contra os indisciplinados, preguiçosos, irresponsáveis do Sul, que abriu as portas à mentalidade que hoje transparece nas reacções à crise italiana. Ela própria também foi vítima do preconceito, quando, em Lisboa ou em Atenas, foi recebida com cartazes que a identificavam com Hitler. Mas nunca foram mais do que pequenas manifestações de sectores radicais, que representam muito pouco.
5. Estamos a assistir ao regresso das “culturas”, umas melhores do que as outras, o que não é um bom sinal. A única coisa positiva é que os alemães, apesar da sua “cultura”, não são assim tão bons. Andam há 10 anos a construir um novo aeroporto de Berlim e ainda não conseguiram acertar. Foi preciso uma investigação nos EUA para ficarmos a saber que a VW, emblema da “technologie”, andava a enganar toda a gente com as emissões de carbono dos seus motores a Diesel. Os aviões de combate não voam e faltam peças aos blindados. Pelo menos dois ministros da chanceler abandonaram o governo por terem plagiado nas teses de doutoramento. A economia alemã continua a ser uma poderosa máquina exportadora graças à capacidade das suas PME e à produtividade da sua mão-de-obra. Foram as reformas de um governo social-democrata (com os Verdes) que a prepararam para tirar partido da globalização.
Recentemente, o mesmo Handelsblatt lembrava que o novo ministro-presidente da Baviera, Markus Soeder, que enfrenta eleições no final do ano, tinha decidido tornar obrigatória a cruz de Cristo em todos os edifícios públicos. As reacções foram muito negativas, incluindo a do arcebispo de Munique, cardeal Reinhard Marx. Cinquenta e oito por cento dos votantes bávaros apoiaram a sua medida. O líder bávaro elegeu a defesa da “cultura alemã” como bandeira eleitoral, visando os imigrantes islâmicos. Diz que quer tirar votos ao partido de extrema-direita AfD.
6. Merkel tem conseguido evitar uma catástrofe europeia. Talvez porque veio do Leste, valoriza a Europa e os seus valores. Mas há uma nova geração que vê a União com outros olhos, muito distintos de Kohl, da geração da II Guerra, ou de Joschka Fischer, a primeira geração que desafiou o que restava do espírito nacionalista dos alemães, durante a crise estudantil de 1968. Parece mais longe de entender que a Europa não sobreviverá, se as “culturas” regressarem ou se se perpetuar uma situação em que, citando António Vitorino, são sempre os mesmos que perdem e os mesmos que ganham.