Uma cara na parede (ou Jorge Molder como peixe fora de água)

Uma imagem gigante provoca quem passa e marca o arranque do LACS, um novo pólo empresarial que dará abrigo a industrias criativas. Ocupa um velho edifício situado na zona ribeirinha de Santos, em Lisboa.

Janela, fachada, rua, arte de rua
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Nuno Ferreira Santos
Engenharia Arquitetônica, Construção
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Jorge Molder: “Vamos manter a expectativa. Nunca fiz nada assim. Veremos o que desperta, o que provoca ou o que evoca” Nuno Ferreira Santos
Transporte ferroviário, trem, estação de trem, vagão de trem, carro
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Há muitos anos, num tempo impreciso, quando Jorge Molder via televisão, ficou-lhe na memória um filme, cujo título não decorou. Era um desses filmes americanos dos anos 40/50 que, grosso modo, contava como uma mulher tinha gastado todo o dinheiro a fazer um anúncio com a sua cara impressa num enorme cartaz, para perceber que tipo de reacções seria capaz de provocar. Molder lembra-se, isso sim, que depois de esse rosto gigante ter aparecido na cidade “aconteceram uma série de coisas”. Ficou impressionado com a empreitada da mulher e também com o filme, mas esqueceu ambos. Até agora, altura em que foi convidado para fazer algo semelhante na empena de um edifício que será a sede do LACS, o novo pólo criativo instalado na zona ribeirinha de Santos, no antigo refeitório do Porto de Lisboa, e que, apesar do pó das obras em curso, já começou a receber inquilinos.

 A “gaveta” em que Jorge Molder tinha guardado essa memória “foi aberta” por estes dias, na sequência desse "desafio intrigante". Lembrou-se da mulher do filme e não resistiu à "forte curiosidade” de ver como resultaria uma imagem sua estendida na tela gigante (12X15 metros) que, desde segunda-feira, cobre uma das fachadas daquele prédio, a que está voltada para a Avenida 24 de Julho. A imagem da autoria de Jorge Molder, que faz parte da série A origem das espécies (2011/12), foi escolhida por Sandro Resende, curador e um dos fundadores do projecto de arte pública contemporânea BillBoard, que procura justamente subverter a mensagem dos tradicionais espaços publicitários, usando-os como suporte de obras de arte, e que já realizou intervenções em Lisboa, Porto e Faro.

Apesar de em 2014 já ter mostrado cinco imagens de grande dimensão em outdoors na Avenida das Forças Armadas, também em Lisboa, Molder é o primeiro a admitir que a rua não é o seu território natural. Ou melhor: o uso da rua como veículo expositivo está longe de ser o habitat da sua obra, que já leva mais de 40 anos e se tem centrado sobretudo na interpretação do subconsciente, na representação da carnalidade, no rosto como paisagem.

Em conversa com o PÚBLICO na tarde em que a imagem de um homem a esticar a boca (ele próprio, embora “representando outro”) foi instalada no edifício do LACS, onde ficará exposta até ao final do ano, o artista confessa que o seu mundo é mais “interior”. “Sou uma pessoa que vive entre a parede e o livro, a parede interior. As paredes exteriores não são exactamente o meu aquário, mas aqui não consegui resistir: se se põe a hipótese de ver uma coisa que nunca vi, não consigo escolher não ver.” Além disso, para um artista que confessa viver “rodeado de filmes”, a possibilidade de mostrar uma imagem desta escala representava, afinal, o regresso “a um mundo de dimensões agigantadas que nos habituamos a visitar no cinema”, onde amiúde aparecem enormes cartazes publicitários nas fachadas dos edifícios.

Sobre o tipo de reacções que esta imagem poderá provocar, Molder mostra-se prudente e recorre até ao anedotário futebolístico nacional (o famoso “prognósticos só no fim do jogo”) para aconselhar comedimento nas análises mais afoitas: “Vamos manter a expectativa. Nunca fiz nada assim. Veremos o que desperta, o que provoca ou o que evoca.” E tem também poucas certezas sobre se as principais mensagens desta fotografia (o definhamento e as deformações do corpo) serão apreendidas. Para lá da sua faceta mais “trágica”, que Molder não nega, prefere sublinhar nesta imagem o seu lado mais “risível”, que impede “formulações definitivas”.

Mensagens (mais ou menos) subliminares e interpretações à parte, uma coisa que o artista espera que aconteça é que quem passar diante deste rosto gigante sinta vontade de entrar no edifício do LACS à procura de mais trabalho seu. Quando aceitou mostrar uma imagem sua no exterior, Molder fez um contraproposta para as paredes interiores, “um jogo” que inclui um vão de escadas, duas fotografias e “dois fantasmas” (reflexos das primeiras imagens). “É um jogo (não gosto da palavra instalação) que me parece complementar com a imagem da fachada, porque é uma reflexão sobre o tamanho e a escala.” Um labirinto de imagens que pode ser visitado a partir do dia 11 de Junho.

Os talentos do Carpe Diem

Cumprindo uma das linhas programáticas do LACS, que, segundo um dos sócios fundadores, João Raimundo, é também “uma obrigação contratual” decorrente da concessão do edifício, haverá ainda espaço para mostrar o trabalho de artistas emergentes. Para a exposição de arranque, foi convidado o grupo de artistas representados pelo centro de arte contemporânea Carpe Diem. Pela mão do curador Lourenço Egreja, um dos fundadores do centro – que deixou de ter uma sede física depois de ter saído do Palácio Pombal, em Lisboa –, apresentam-se numa das caves do edifício mais de sete dezenas de múltiplos (imagens de obras em vários suportes em múltiplos de 30) de outros tantos artistas. “É um conjunto que conta uma parte da história do Carpe Diem e que representa o espírito do LACS de promover valores emergentes na arte portuguesa”, diz ao PÚBLICO Egreja, que organizou a exposição em cinco núcleos: Natureza, Figuração, Animália, Arquitectura e Abstracção.

Para o curador, espaços como o LACS – que “propõem novos procedimentos para circuito das artes e que pretendem agregar vários saberes ligados a todos os pontos da arte, desde as molduras à internacionalização” – fazem cada vez mais sentido, num tempo em que é difícil para uma associação como a que dirige manter em Lisboa um espaço físico em permanência. “A saída do Palácio Pombal fez com que repensássemos a nossa acção. Ocupar edifícios públicos neste momento é um grande calcanhar de Aquiles – gastávamos muito dinheiro destinado à programação na manutenção do edifício. E quando se passa muito tempo a fazer isto, torna-se prejudicial para o programa.” Ficou a lição: a associação Carpe Diem está “mais pequena”, mas também “mais livre”.

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