O corpo de Sofia Dias e Vítor Roriz continua a pregar partidas à palavra
A dupla de bailarinos-coreógrafos leva ainda mais longe a sua pesquisa da relação entre fisicalidade e verbalidade em O que Não Acontece. No Teatro Nacional D. Maria II, a partir desta quinta-feira.
No princípio é a palavra. A palavra cantada, entrecortada, como uma má ligação telefónica que só permite perceber sílabas esquartejadas de cada frase musical. Aos poucos, os sons que lutam para sair da garganta de Sofia Dias vão-se tornando mais entendíveis e a cada nova passagem os versos iniciais de Philadelphia, de Neil Young, deixam de ser matéria fragmentada e erguem-se num contínuo.
Assim que a palavra estabiliza, no entanto, é o corpo – primeiro o de Sofia, depois o de Vítor Roriz – a ser invadido por essa quebra de um discurso fluido. Vemos os gestos dos dois traídos por uma invisível avaria na linearidade temporal. Como se alguém tivesse roubado metade dos frames dos seus movimentos e observássemos a mesma comunicação imperfeita. Isto, no entanto, criando uma fricção evidente: se os gestos saltam que nem uma agulha nas espiras de um disco de vinil, as frases que os dois bailarinos e coreógrafos lançam em voz alta escutam-se sem atrito.
O início de O que Não Acontece, espectáculo integrado na programação do Alkantara que a dupla estreia esta quinta-feira no Teatro Nacional D. Maria II – onde fica até sábado –, dá seguimento a uma pesquisa da relação entre o gesto e a palavra, entre o corpo e a linguagem que os dois vêm desenvolvendo há vários anos. E colhe parte da sua inspiração directamente nas quatro Performances para o Alkantara que apresentaram no mesmo festival há dois anos. Nessa altura, aplicando “um corte transversal” às suas temáticas de trabalho – a palavra escrita, a palavra falada, os objectos e a voz –, resolveram isolar e explorar de forma mais aprofundada os elementos do seu universo artístico.
Agora, ao voltarem a juntar todas as peças num só espectáculo, optaram por trazer dessa experiência sobretudo “um dispositivo mais exposto, mais vazio”, explicam ao PÚBLICO. O que equivale a dizer que o cenário é despojado – o pouco que existe foi trazido das instalações do Espaço Alkantara, onde as performances aconteceram –, deixando todo o dispositivo técnico à vista, e que são os próprios a operar o som que acompanha a peça. Essa transparência em relação ao processo criativo levou a que a dupla se permitisse alcançar “um lugar mais indefinido”. “Isso era algo que não estávamos habituados a partilhar com o público”, dizem. “Estamos contentes com este espectáculo também porque contém essa indefinição e um certo desconforto.”
De toda essa experiência com as performances também retiveram a ideia da dissociação entre movimento e palavra, tornando a gestualidade de O que Não Acontece, por vezes, bastante ilustrativa; e o protelamento constante da acção dos objectos em cena – “todos sabemos como funcionam, mas adiamos a sua utilização até não os usarmos, até não acontecer”. Mas também a maior disponibilidade para assumir a narrativa que então mostraram é aqui reiterada. “Explorámos coisas como a criação de uma narrativa a partir do gesto, porque o gesto sugere um imaginário – tal como as palavras têm sempre um universo por detrás delas, sempre que dizemos alguma coisa”, defende Vítor Roriz. “E sempre que fazemos um movimento também podemos criar inúmeras narrativas a partir da sua forma ou da sua sensação física.”
Arestas, fendas, espaços
A coexistência em palco de palavra e movimento é uma das grandes questões que dominam a obra coreográfica de Sofia Dias e Vítor Roriz. Há uma tensão nessa relação que é extremada em O que Não Acontece, mas que resulta também da possibilidade de abolir uma hierarquia entre os dois. “Queremos sempre tentar perceber como é que o corpo sobrevive, como é que não fica aplacado pelo discurso”, diz Sofia Dias. Daí que a criadora fale de “tentativa de sobrevivência do movimento diante da palavra” e que Vítor complemente dizendo que “o corpo tenta contornar, pregar partidas, tirar o tapete à palavra”. É isso que vemos quando, logo nos primeiros instantes, os dois se movem em reacção à rigidez do texto e abrem os sentidos que muitas vezes as palavras fecham e codificam.
Também por isso O que Não Acontece – peça cheia de arestas, de fendas e de espaços por onde a comunicação se possa esvair – não resiste a nomear, a atribuir nomes às coisas. E fala dessa nomeação como antídoto para o silêncio e para o vazio. Nomear para não deixar espaços em branco, para fugir ao tal desconforto que está sempre à espreita, para estabelecer diálogos. Por outro lado, a peça resvala também para uma comunicação primária e esfarelada, para uma falência das convenções, para uma vontade, intensamente física, de querer atravessar o corpo do outro. E até para a perda da linguagem. “Olhei para ti e esqueci-me do teu nome”, ouve-se às tantas. E, no entanto, caído o nome, o corpo do outro ali continua, sem fraquejar.