Proteção social: os complementos que fazem falta
As políticas sociais foram reconhecendo procuras diferenciadas, cada vez mais segmentadas pelas necessidades particulares de cada um de nós, e a configuração dos sistemas de proteção vem sendo revista em conformidade.
Todos têm direito à segurança social e à proteção da saúde, diz o nosso texto constitucional e este foi o ponto de partida de todo o edifício legislativo da proteção social que instituiu os sistemas de segurança social e de saúde depois de 1974.
À moda da época, os constituintes de 1975 confiaram ao Estado toda a organização da oferta de proteção social, o qual criou enormes sistemas públicos que tomaram como adquiridas as necessidades a satisfazer. Exprimia-se deste modo o paternalismo do Estado, julgando saber tudo aquilo de que os cidadãos realmente precisam e melhor que eles.
Claro que, ao longo das quatro décadas de construção do nosso Estado de direito democrático, o enquadramento legislativo da proteção social tem sido reformulado por diversas vezes para acolher outros olhares de cidadania e novas abordagens de política pública que vão para além do pensamento seminal dos constituintes. As políticas sociais foram reconhecendo procuras diferenciadas, cada vez mais segmentadas pelas necessidades particulares de cada um de nós, e a configuração dos sistemas de proteção vem sendo revista em conformidade.
Complementos que nos faltam
No caso da segurança social, sucessivas leis de bases foram adaptando o mandato constitucional à realidade evolutiva, instituindo como um dos princípios fundadores do sistema o da complementaridade. Esta consiste na articulação das várias formas de proteção públicas, sociais, cooperativas, mutualistas e privadas com o objetivo de melhorar a cobertura das situações abrangidas e promover a partilha das responsabilidades nos diferentes patamares da proteção social.
Assim, estão previstos regimes complementares de iniciativa coletiva e de iniciativa individual, sendo estes que, ao menos em teoria, melhor podem organizar respostas à segmentação da procura, especialmente nos domínios da inclusão, da empregabilidade e da parentalidade.
Entretanto, as conhecidas dificuldades estruturais do sistema público de segurança social, financiado por repartição e tendo contra si o envelhecimento demográfico e um crescimento económico anémico, impuseram reformas que se traduzem na redução das prestações futuras.
Noutros países, o mesmo movimento foi acompanhado pelo reforço de subsistemas complementares financiados por capitalização. Os sistemas que combinam o financiamento por repartição e por capitalização são hoje predominantes nos países mais desenvolvidos, mas não foi esta, até agora, a evolução do nosso sistema. Em 2016, apenas 3,7% da população em idade ativa estava coberta por um regime profissional complementar e 4,5% por um plano individual facultativo (OECD, Pensions at a Glance, 2017). A devolução de muitos riscos associados à longevidade e típicos das sociedades pós-industriais para a esfera da responsabilidade dos cidadãos, que as reformas já feitas entre nós arrastam, solicita, por isso, complementos que nos faltam ainda.
Muitas razões de natureza económica, social e fiscal o explicam; entre elas, o portuguesíssimo défice de autoconfiança da sociedade civil que é a outra face do paternalismo dos poderes públicos e nos aflige desde tempos imemoriais. Como sair disto?
A resposta passa, em boa medida, pela operacionalização do previsto na Lei de Bases sobre a regulamentação, supervisão e garantia dos regimes complementares. A supervisão prudencial, a fiscalização dos regimes e principalmente a instituição de mecanismos de garantia (artigo 86.º da Lei de Bases da Segurança Social) são decisivas para se colmatar o persistente défice de confiança. No caso das mutualidades, a revisão em curso do Código das Associações Mutualistas é uma oportunidade ímpar para dar um passo importante na boa direção.
Subsistemas de saúde
O direito à proteção da saúde é garantido nos termos constitucionais não só através do serviço nacional de saúde universal tendencialmente gratuito como também pelas formas empresariais e privadas da medicina, articuladas com aquele.
Coube às sucessivas versões da lei de bases da saúde ir adaptando a oferta de cuidados às novas necessidades e aspirações diferenciadas dos cidadãos. Assim, a proteção da saúde veio a ser remetida para a responsabilidade conjunta dos cidadãos, da sociedade e do Estado em liberdade de procura e de prestação de cuidados de saúde pelos estabelecimentos do Estado e outras entidades privadas sem ou com fins lucrativos (Base I da Lei em vigor).
Tendo arrancado este ano a revisão da Lei de Bases da Saúde, com o despacho ministerial n.º 1222-A/2018, merece aplauso o que aí se diz quanto ao sentido geral da mesma: “proporcionar ao país uma Lei de Bases da Saúde que assegure aos portugueses a melhor promoção e proteção da saúde, incluindo o acesso apropriado a cuidados de saúde de qualidade. A Lei de Bases da Saúde diz respeito ao sector público, ao sector social e ao sector privado. Mas diz respeito sobretudo ao bem-estar dos portugueses.”
Também os subscritores de um documento recente sobre a revisão da Lei de Bases (entre os quais o autor destas linhas) se pronunciaram de forma convergente no sentido de “alargar e diversificar as formas de prestação e de gestão dos serviços de saúde, em benefício dos cidadãos, independentemente da natureza pública, privada ou social das instituições prestadoras de saúde.”
Para dar consequência a estas boas intenções, é crucial dinamizar o lado pagador dos cuidados de saúde. A crescente procura privada de cuidados complementares aos do SNS é alimentada pelo desejo de maior conforto na hospitalização, de resposta mais rápida em cirurgia e o acesso célere aos meios complementares de diagnóstico e terapêutica. Mas, para se materializar e expandir necessita de mais subsistemas pagadores de cuidados de base profissional ou associativa, que ultrapassem as inevitáveis exclusões de pura lógica seguradora, valorizando o vetor solidário de partilha coletiva dos riscos.