Banco de Portugal fiscaliza créditos “escondidos” na Parvalorem
Um crédito dado pelo BPN à Cofina, que entretanto já foi liquidado, foi transferido para a Parvalorem, o veículo público criado para gerir os créditos tóxicos do BPN. Operação vai levar Banco de Portugal a revisitar os 739 milhões de euros que se encontram no veículo criado pelo Estado para gerir os activos tóxicos do BPN.
O Banco de Portugal (BdP) vai voltar a fiscalizar a carteira de crédito em cumprimento do antigo Banco Português de Negócios (BPN) que o Estado transferiu em 2012 para a Parvalorem, uma entidade pública criada para gerir activos tóxicos e que não está autorizada a executar operações bancárias. A iniciativa do BdP surge depois de confrontado pelo PÚBLICO com um crédito vivo de 20 milhões de euros da Cofina que escapou ao radar do supervisor. Essa falha é justificada pelo BdP com o facto de apenas avaliar a carteira da Parvalorem por amostragem.
A 26 de Março de 2012, ainda incorporado e gerido pela Caixa Geral de Depósitos (CGD), o BPN concedeu um financiamento à Cofina [dona do Jornal de Negócios, da Sábado e do Correio da Manhã] de 20 milhões de euros, com maturidade até Outubro 2016, e garantido por uma livrança. O dinheiro serviu para a empresa de Paulo Fernandes, cotada na Bolsa de Lisboa, pagar à CGD uma divida de idêntico valor. À época o BPN era administrado por uma equipa da CGD chefiada por Francisco Bandeira, o ex-vice-presidente do banco público.
Três dias volvidos, a 29 de Março de 2012, o crédito de 20 milhões atribuído à Cofina foi transferido para a Parvalorem, sociedade comercial constituída, em 2010, para limpar o “lixo” do balanço do BPN, para o tornar vendável. E no veículo público o empréstimo foi contabilizado em situação regular, como, aliás, não podia deixar de estar pelo pouco tempo que passara desde a sua concessão. E, com o crédito, foram transferidos os ficheiros com os dados confidenciais da empresa.
O movimento ocorreu ainda nas 24 horas que antecederam a assinatura do contrato de venda do BPN ao Banco BIC, agora EuroBIC, negócio carimbado a 30 de Março de 2012, pelo Estado, representado pela então secretária de Estado Maria Luís Albuquerque [o rosto da polémica privatização do BPN], e por Luís Mira Amaral, do lado comprador.
Mas será só em Setembro, ou seja, seis meses depois de ter transitado para a Parvalorem, que o cliente do BPN foi notificado de que a sua relação comercial deixara de ser feita com o financiador de origem e passara para a Parvalorem, ainda que esta não estivesse, como ainda não está, autorizada pelo BdP a executar essas operações. Segundo as contas da Parvalorem, a Cofina amortizou os 20 milhões de euros de dívida dentro dos prazos e nas condições contratadas à data em que os contraiu junto do BPN.
739 milhões em crédito
Durante o mês de Setembro de 2012, milhares de outros clientes do banco receberam a mesma informação de cessão do seu financiamento a favor do veículo público, através de carta timbrada com as duas marcas, Parvalorem e BPN. E este é um detalhe que interessa, pela confusão que provoca junto dos devedores cumpridores. É que nessa altura o BPN já tinha sido privatizado e estava a ultimar o processo de fusão com o BIC. O nome BPN desapareceu a 10 de Dezembro de 2012.
“A Cofina SGPS não tem qualquer dívida à Parvalorem”, disse ao PÚBLICO fonte oficial do grupo de comunicação social, para acabar a reconhecer, todavia, a relação comercial com a sociedade comercial liderado por Francisco Nogueira Leite.
Depois de uma renegociação de spread e de juros, em Novembro de 2014, a empresa de Paulo Fernandes liquidou 13 milhões de euros, a última tranche da sua dívida (de 20 milhões). A Cofina constata que “antecipou em dois anos o prazo contratualizado com o BPN”, uma vez que em 2012 e 2013 a Parvalorem já recebera o restante.
Este é um, entre outros exemplos, de clientes empresas (algumas cotadas) e particulares do BPN, em situação regular, que viram, sem o seu conhecimento prévio, transitar os seus créditos para o gestor de activos tóxicos. E, deste modo, a sua relação bancária escapou ao controlo do BdP.
Em causa está uma carteira de crédito vivo/performing de 739 milhões de euros em que se incluem os 20 milhões de euros emprestados à Cofina. Tratou-se de um processo de selecção de activos autorizado pelo anterior Governo, e acompanhado pelo BdP, sem que tenha havido controlo de um auditor.
Ainda que não conste da lista de empresas autorizadas a deter crédito vivo, desde Março de 2012 a Parvalorem remete para a Central de Recuperação de Crédito do BdP (a título de informação) um ficheiro (um quadro), designado CRC, com dados detalhados sobre a situação de cada cliente, com o nome e o número de contribuinte, e referência à situação do momento: se paga, se não paga, quais as prestações em falta.
Ao PÚBLICO o BdP justificou eventuais lapsos de atenção que possam existir com a “dimensão da carteira” do BPN repassada para a Parvalorem, o que só possibilita “uma análise por amostragem”.
“Desde o início” foi transmitido “a todos os intervenientes no referido processo de cedência de créditos”, leia-se Governo, BPN e EuroBic, “o entendimento de que só deveriam ser cedidos à Parvalorem créditos vencidos”, esclareceu a mesma fonte oficial do BdP, após ser confrontada pelo PÚBLICO com o tema Cofina.
Desconhecendo “o caso”, o BdP “não pode pronunciar-se”, mas avança que, “tal como nas demais situações em que transmite o seu entendimento a respeito de situações concretas relacionadas com operações de cessão de créditos” e “se detectar situações irregulares, actuará em conformidade”. E o BdP voltará agora a analisar os 739 milhões de euros entregues à entidade que não fiscaliza.
De 2012 a 2016, os clientes do ex-BPN liquidaram junto da Parvalorem 593 milhões de euros de crédito bom, dos quais 418 milhões em dinheiro e 175 milhões através de dações em pagamento.
“Acho estranho o desconhecimento do BdP, pois há seis anos que corre em tribunal um processo, onde, para além da transferência de créditos vivos, se contestam outros atropelos aos direitos dos trabalhadores, como a transmissão feita à revelia do BdP de centenas de trabalhadores para a Parvalorem, para realizarem funções bancárias em outsourcing”, observou Ricardo Gonçalves, trabalhador da Parvalorem e membro comissão de trabalhadores. “Infelizmente, o processo tem sofrido atrasos inexplicáveis e outras bizarrias em prejuízo dos trabalhadores”, observou ainda.
Crédito a trabalhadores do BPN
Na carteira performing da Parvalorem constam todos os financiamentos concedidos pelo BPN aos seus trabalhadores (com excepção do crédito à habitação que ficou sob gestão do agora EuroBIC), antes e depois da nacionalização.
O BdP justificou-o ao PÚBLICO recorrendo ao Artigo 9.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras: “A concessão de crédito por empresas aos seus trabalhadores, por razões de ordem social [não é crédito].” E aclara que “o carácter social” leva em linha de conta “as finalidades específicas de ordem social que visa prosseguir, como seja o pagamento de despesas de saúde, de educação e de família, da aquisição e reparação de viatura ou equipamento informático ou quaisquer outras que assim sejam qualificadas”.
Acontece que a negociação de venda do BPN manteve no círculo do Estado (na Parvalorem), resguardando o Banco BIC, outros créditos que incorporam maior risco, mas que as autoridades classificaram como tendo “natureza social”. Exemplo disso são todos os empréstimos para compra de viagens, para realização de obras, para aquisição de electrodomésticos ou aumento de plafonds. E ainda todos os financiamentos ao consumo dos cerca de 1500 trabalhadores do antigo BPN que agora trabalham no EuroBIC.
Um deles é o crédito pessoal que Ricardo Gonçalves contraiu em Março de 2009, quando o BPN já estava sob a alçada da CGD e que estava em situação regular, tendo sido entretanto liquidado na íntegra.
A 18 de Maio, o mesmo trabalhador, da direcção de auditoria da Parvalorem, apresentou no BdP um pedido de reposição dos “montantes” que alega lhe terem sido “indevidamente sacados por entidade [a Parvalorem] sem autorização”. Ricardo Gonçalves solicita ainda que o BdP “sancione” o BPN pela “cessão ilegal de operações bancárias e quebra de sigilo bancário e protecção de dados”.
O dossier BPN rebentou em 2008, quando faliu na praça pública, alvo de uma megaburla, e desde aí não parou de gerar polémicas. E não foram apenas as relações promíscuas com altas esferas do PSD, mas também os custos que o processo acarretou para os contribuintes que se admite que possam ascender a nove mil milhões de euros.