Icomos outra vez crítico do Porto. E Gaia também não escapa
"Fachadismo", "renovação" em vez de reabilitação e esvaziamento populacional, com "gentrificação" à mistura, descreve o Icomos à UNESCO.
O último relatório técnico do Icomos Portugal sobre a situação do Centro Histórico do Porto, Ponte Luiz I e Mosteiro da Serra do Pilar, a área classificada como Património da Humanidade pela UNESCO, mantém as críticas ao modo como o bem está a ser gerido e preservado. A entidade consultora da UNESCO abre o documento de Fevereiro afirmando que há “vários ataques à integridade e autenticidade” da zona classificada e elenca vários exemplos, dando agora um enfoque especial ao despovoamento do centro histórico e à “pressão” sobre os moradores, provocada pelo turismo. A Câmara de Gaia também é visada, por causa do projecto da Cidade do Vinho.
Comecemos por aqui. Relembrando, tal como já denunciara num documento prévio, que a área classificada continua sem Zona Especial de Protecção (ZEP), depois de a Câmara de Vila Nova de Gaia ter apresentado uma acção em tribunal contra a sua constituição – que ganhou –, o Icomos retoma o tema a propósito do projecto da Cidade do Vinho, que irá nascer numa zona de antigos armazéns do vinho do Porto. “A aprovação do projecto de Gaia dependeu exclusivamente da Câmara de Gaia, responsável pelo cancelamento da ZEP”, escreve a presidente do Icomos, Soraya Genin, no relatório a que o PÚBLICO teve acesso. Qualquer relação de causalidade entre as duas iniciativas não é, contudo, avançada pelo Icomos, além desta constatação.
O projecto da margem Sul do rio Douro é apresentado, ao lado de vários outros, no Porto, como um mau exemplo do que tem vindo a ser feito. No relatório refere-se mesmo que “é incompreensível que as entidades (de gestão e protecção) tenham aprovado todos estes projectos que põem em risco o valor universal do bem classificado, a sua autenticidade e integridade”. No lote dos maus exemplos e do “fachadismo” está o já várias vezes referido projecto do quarteirão das Cardosas, mas também a intervenção no quarteirão da Casa Forte, na Praça de Carlos Alberto, no edifício d’A Brasileira ou na antiga Pensão Monumental. No caso das Cardosas e da Casa Forte, o Icomos alerta mesmo que o que considera serem “intervenções destrutivas” na zona histórica “são promovidas pelo organismo responsável pela implementação do Plano de Gestão do Centro Histórico, a Sociedade de Reabilitação Urbana”.
Não perdendo de vista o edificado, o relatório do Icomos foca-se, desta vez, no esvaziamento populacional do centro histórico e na transformação de muitas habitações permanentes em alojamento turístico. “Indo contra as recomendações [internacionais], há uma perda gradual das características do tecido e paisagem urbana, após demolições massivas de edifícios históricos e novos, bem como um crescente esvaziamento populacional do centro histórico do Porto. Estes problemas são comuns a muitas cidades históricas que estão a ser transformadas pela pressão crescente dos turistas, da indústria do Turismo, da intensificação do desenvolvimento imobiliário, da gentrificação, da transformação de edifícios históricos para novas necessidades e estilos de vida de uma população mais abastada. Apenas uma gestão e protecção eficientes (o que não é o caso actual) poderia ajudar a travar estes problemas.”
O Icomos defende que muitas intervenções apresentadas como reabilitação “acabam por ser operações de renovação destinadas a uma nova população que substitui a antiga e desfigura os edifícios históricos e espaços públicos”. E neste capítulo, expressamente dedicado a “pressão turística e despovoamento”, refere-se ao que classifica como “efeitos perversos” do crescimento da “pressão turística”. “A gentrificação está patente em algumas áreas do Porto: os edifícios são comprados, especialmente por investidores estrangeiros, e transformados em hotéis, ou outras formas de alojamento turístico. Em consequência disso, o acesso à habitação permanente tornou-se muito mais difícil, senão impossível, para a população local das áreas históricas, particularmente por razões monetárias. Ao mesmo tempo, estamos a assistir ao desaparecimento das lojas tradicionais, que dão à cidade do Porto o seu carácter único.”, descreve Soraya Genin.
A entidade consultiva avança com números recolhido junto do Registo Nacional de Turismo para o Porto, para justificar a conclusão anterior: entre Abril de 2009 e Abril de 2010 fizeram-se oito pedidos para alojamento local na cidade; entre Abril de 2015 e Abril de 2016, os pedidos já eram 849. “Apenas no site do Airbnb existem 2710 unidades de alojamento no Porto”, acrescenta-se. Já a população do centro histórico, avalia o Icomos recorrendo aos últimos três Censos, desceu “mais de metade”, em relação à que era quando o centro histórico da cidade foi classificado pela UNESCO, em 1996.
Depois da análise, dura, como de costume – e que já levou o presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, a acusar o organismo de “portofobia aguda”, a propósito do projecto para a Estação de S. Bento –, o Icomos deixa recomendações que, frisa, devem ser tomadas de forma “urgente”. A presidente do órgão consultor da UNESCO pede ao Comité do Património Mundial que peça “uma gestão efectiva e de protecção” da área classificada no Porto e Gaia, bem como a instauração da ZEP e o desenvolvimento de um “plano de salvaguarda detalhado”.
Ao comité internacional pede-se ainda que avalie as intervenções já feitas, olhando para os projectos de arquitectura, e as que estão em curso, mas – alerta-se – olhando também para os projectos reais, “em particular planos de alteração (e não os estudos preliminares, como os enviados sobre o quarteirão das Cardosas, que não mostravam as demolições)”, já que, diz o Icomos, voltando a este exemplo, a informação enviada pelo município é "incompleta ou falsa". Por fim, o Icomos pede ainda que seja avaliada a saída de moradores “completas ou em curso”, bem como “as medidas de realojamento” aplicadas, pedindo “uma atenção total e a curto prazo” a tudo o que é descrito no relatório.