Os vinhos aristocratas de Júlio Bastos têm uma ligação à terra
No princípio dos vinhos de Júlio Bastos há “uma ideia”. Uma ideia bem contaminada pela memória da família e pela devoção à tradição de Estremoz. Década e meia após o seu renascimento, a ideia que está na base dos Dona Maria continua a dar origem a vinhos de pura classe
É normal, e muito sensato, associar-se o perfil de um vinho ao lugar onde as uvas nasceram e cresceram, mas para podermos perceber os vinhos Dona Maria temos de saber quem é Júlio Bastos. Não, ele não é o enólogo que assina os Dona Maria, os Amantis ou os fabulosos Júlio B. Bastos (uma homenagem ao pai) – essa tarefa cabe à enóloga Sandra Gonçalves. Nem sequer é o agrónomo que trata das videiras ao longo do seu ciclo vegetativo. Júlio, dono da Quinta do Carmo, é um fidalgo da velha aristocracia alentejana que gosta de pôr os pés na terra e as mãos na adega e é a fusão desse lado senhorial com os hábitos rurais que conserva que dá origem à sua “ideia” de vinhos e nos ajudam a entender o que faz - vinhos distintos, muito sofisticados, depurados, sem extravagâncias, concebidos para paladares exigentes que procurem algo mais do que a suavidade ou a doçura fácil da fruta, mas ao mesmo tempo vinhos que procuram obedecer às condições da natureza prodigiosa das encostas suaves de Estremoz.
No Alentejo, uma região nova no mundo dos vinhos, é raro haver quem consiga transferir para os seus vinhos uma identidade tão forte como Júlio Bastos. Há nos seus tintos e nos brancos uma feição mediterrânica, de sabores quentes, muito própria dos vinhos das grandes planícies do sul de Portugal. Mas há também aromas dominados pelas flores e pelos arbustos e há uma contenção no estilo, no limiar da frugalidade, que os distinguem do Alentejo – embora estas características se encontrem em outros vinhos da zona de Estremoz ou nos que nascem na vizinha serra de São Mamede. Júlio Bastos diz gostar de fruta contida, sem sensações de compota, de notas florais, de taninos presentes, de secura e acidez, o que torna os seus vinhos gastronómicos e com grande potencial de envelhecimento. Foi essa aposta que o tornou como um dos grandes produtores alentejanos – e do país. Os seus vinhos são altamente pontuados nas revistas nacionais e internacionais e dispõem de uma legião de fiéis consumidores que lhe apreciam o estilo e a sua coerência em resistir a modas.
O lugar de onde Júlio Bastos dirige toda a sua operação não ajuda a explicar esta imagem de rigor e austeridade. Ou talvez ajude. A casa da Quinta do Carmo é um palácio senhorial do século XVIII, com muitos dos excessos do barroco, que foi adquirido pelo rei D. João V para a sua amante Maria, na época áurea de um reinado enriquecido pelos filões de ouro do Brasil. A quinta é, na opinião do crítico João Paulo Martins, “a que melhor reproduz o conceito bordalês de Château, com a adega por perto e uma ideia de luxo rural de bom gosto”. Só sete dos 80 hectares de vinha de Júlio Bastos ficam à volta do palácio, mas este é um detalhe na sua história. Há nas suas criações uma nota de lugar e uma dedicação a um conceito que recusa a inspiração novo rica da extracção, da doçura e da intensidade e aposta numa feição mais aristocrática inspirada na elegância e na sofisticação. Os vinhos que produz fazem sentido com a sua personalidade e com a imagem que o solar da sua família projecta.
Mais do que saberes empíricos, mais do que conhecimentos científicos, Júlio Bastos, 61 anos, tem ideias sobre o vinho. Ou, mais precisamente, uma ideia que resulta da sua longa ligação às videiras e às adegas que herdou da sua família no momento em que, quando tinha 29 anos, regressou de Madrid para mudar a sua Quinta do Carmo. Essas ideias são alimentadas por um certo apego à memória da família, uma preocupação em manter vinhas velhas, um propósito em explorar outras castas importadas para o Alentejo e, principalmente, pela confiança que a enóloga da casa, Sandra Gonçalves, lhe merece. “Eu dou ideias e a Sandra aplica-as”, diz Júlio Bastos.
Mas, será só assim? Não. Sandra, formada em enologia pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro trouxe mundo para a Quinta do Carmo. Não se fazem vinhos assim cumprindo apenas directrizes. Em 2003, Sandra trabalhava com Hans Christian Jorgensen na Cortes de Cima quando o enólogo Luís Duarte a recomendou para tomar reais os vinhos idealizados por Júlio Bastos. E não são apenas os “blends” tradicionais que têm o seu dedo. “Eu gosto muito de fazer monocastas, são vinhos mais definidos, menos complicados e ajustam-se por vezes a alguns estados de espírito”, diz a enóloga. Para lá dos blends dos Dona Maria e dos Amantis, Júlio Bastos tem no mercado monocastas como o Petit Verdot, o Touriga Nacional, o Viognier e, como não podia deixar de ser, o Alicante Bouschet. Os seus tintos só aparecem no mercado após um estágio em garrafa que lhes harmonize as suas diferentes componentes. “Eu prefiro subir o preço e ir mais devagar”, justifica, embora no caso dos Amantis tintos seja nítida uma rugosidade que recomendariam mais tempo de espera na garrafa.
Uma caminhada pelo enorme e imponente átrio em frente ao solar da Quinta do Carmo é uma boa introdução para se perceber os vinhos que nascem na adega numa das suas alas. Ali, velhos lagares de mármore construídos no século XIX coexistem com equipamentos de ponta para o controlo de temperaturas na fermentação, fundamentais para conservar a fruta e as principais componentes fenólicas do vinho. Cubas de inox ficam numa sala alta mesmo ao lado de uma sombria cave onde 500 barricas estagiam o vinho das futuras edições da casa. “Todos os anos compramos 70 novas barricas”, explica Júlio Bastos. Mesmo que a madeira nova não seja nem de longe nem de perto uma das marcas de água do estilo de vinhos de casa – uma excepção para o Dona Maria Grande Reserva 2013 -, a utilização de madeira francesa ou americana não é dispensada. Há um certo classicismo nos aromas e na complexidade dos seus vinhos brancos e tintos que obrigam o seu uso.
Mas, mais do que na adega onde todos os anos se produzam, engarrafam, embalam e expedem mais de meio milhão de garrafas com as marcas de Júlio Bastos, é na vinha que o produtor se mostra mais exuberante e feliz. Para ele, a sua ideia de vinho, branco ou tinto, esboça-se a partir de um determinado conceito de vinha. As vinhas tradicionais do Alentejo, velhas de décadas, com cepas retorcidas e, aqui e ali, enxertadas com clones de castas tradicionais adaptados às condições do solo e do clima são o seu reino maravilhoso. Júlio Bastos olha o horizonte dos seus 73 hectares de vinhedo plantado a sete quilómetros da casa apalaçada de Estremoz com evidente orgulho. Toca nas cepas retorcidas, acaricia os cachos que começam aparecer depois dos primeiros dias de calor, compara a carícia que lhes faz às que se dedicam aos bebés. As vinhas são, afinal, a razão principal do seu sucesso como produtor. A base da sua aventura, reiniciada a partir do zero em 2003, foi uma vinha velha (ver texto ao lado).
A base dessas vinhas só podia ser a Alicante Bouschet. Afinal, foi um dos seus antepassados, John Reynolds, que, no século XIX teve a ousadia de importar para o Alentejo (para a Herdade do Mouchão, que tinha adquirido, e para a Quinta do Carmo, que era posse da sua mulher Isabel d'Andrade Bastos) essa casta francesa à qual ninguém tinha ligado importância. Clones de Alicante com mais de 60 anos de idade e com uma herança genética datável dos primórdios da casta no Alentejo existiam na vinha velha que Júlio Bastos adquiriu em 2000 para retomar a sua ligação ao vinho. Entretanto, já replicou numa nova plantação de três hectares esse material genético. “São vinhas que dão um Alicante menos tintureiro [ou seja, não produzem tanta cor] e são também menos produtivas do que as que as dos clones que existem na região”, diz Júlio Bastos. O Alicante Bouschet monocasta que produzem é um vinho de uma sofisticação e uma classe raros.
Se há na sua atitude uma clara dedicação à Alicante, Júlio Bastos declara-se neutral no debate sempre vivo em torno do confronto entre castas nacionais e internacionais. “Interessam-me os melhores vinhos possíveis”, diz em jeito de quem não valoriza nem aprecia os termos desse debate. “Há castas portuguesas como a Trincadeira ou a Castelão que não se dão nas nossas terras”, diz, antes de recordar que, em tempos, a própria Alicante Bouschet foi uma variedade estrangeira antes de ser “nacionalizada”. Quanto à persistente discussão que há muito também opõe devotos e detractores de Aragonez, Júlio Bastos fica numa posição intermédia: “o problema não é a casta mas os clones da casta que foram escolhidos e plantados”, diz. Quanto a castas estrangeiras, Júlio Bastos não esconde uma certa predilecção pela Syrah. E aprecia o volume e o potencial de envelhecimento da Viognier. E por aqui fica. Para lá de ensaios com Touriga Franca, Júlio Bastos quer parar as suas experiências para consolidar as que já fez. “Já basta de confusão”, diz.
Com duas filhas a viver em Lisboa, Júlio Bastos chega a esta fase do seu percurso com a consciência do dever cumprido e começa a sonhar mais com tardes de golfe e a pensar menos nas viagens cansativas que faz a cada passo para promover os seus vinhos mundo fora. Mas, sendo reconhecido como um dos grandes nomes da moderna geração do vinho português, não pode parar. Na sua cabeça há sempre novos projectos de replantação das vinhas ou planos para aumentar a capacidade de processamento para a sua adega. No essencial, porém, Júlio Bastos está confortável: os seus vinhos são o resultado da sua ideia e, como costuma acontecer nas histórias felizes, a sua ideia foi reconhecida e apreciadas pelos enófilos um pouco por todo o mundo.