Um tesouro da canção norte-americana
John Prine, músico a que aqui na Europa ainda não prestámos grande atenção, lança o seu primeiro álbum em 13 anos. Vale a pena começar a descobri-lo já por aqui.
Se o Bob Dylan e o Johnny Cash dizem que és realmente bom a fazer canções, pode dizer-se que as probabilidades de o seres são bastante altas. É o caso deste senhor de 71 anos, um cavalheiro com quase meio século de carreira, que acaba de lançar Tree of Forgiveness, o seu primeiro álbum em mais de uma década.
John Prine foi carteiro de profissão, e descoberto no circuito folk de Chicago por Kris Kristofferson, que pegou nele e o editou através da Atlantic em 1971. Fundou a sua própria editora nos anos 80, a Oh Boy, que continua a utilizar para publicar todo o seu trabalho até à data. Tem dois Grammys. Bebia copos com Townes Van Zandt, que era barra pesada. Os Everly Brothers e Emmylou Harris cantam canções dele. Vai no terceiro casamento, gosta da família dele, parece que tem um cão. Sobreviveu a um cancro no pescoço e a outro, mais recente, nos pulmões. Adora fumar. As doenças e os consumos mudaram-lhe dramaticamente a voz, mas ela nunca esteve tão bonita. Está cheia de gravilha, controlada com toda a mestria no meio de várias contingências. Acima de tudo está cheia de felicidade, daquela que basta ouvir uns segundos para perceber que é mesmo de verdade. Quase que dá para o ouvir a sorrir. A vida tem sido divertida, dinâmica, difícil, boa.
Tree of Forgiveness é um disco maravilhoso. Teve muita gente amiga a ajudar, nomeadamente Dan Auerbach, dos Black Keys, que de facto parece ser um tipo porreiro e que sabe disto; já há uns anos tinha contribuído para Locked Down, do irrepetível Dr. John. É curtinho, 30 e poucos minutos, dez músicas. Sem palha, sem nada para esconder.
Os arranjos são simples, variados quanto baste; para além da omnipresente guitarra acústica tem uma bateriazita aqui, um teclado ali, uma pianada, um harpa mais para o fim, umas cordas no baladão. A métrica das frases e da entrega não podia ser mais enxuta, bem arrumada, com economia e toda a arte — ele é sensei.
As temáticas vão a muitos sítios. O Sr. Prine aliás disse em entrevista que quando começaram a chateá-lo para ir gravar o disco ele não estava nem a ver como é que todas estas canções podiam ficar juntas no mesmo trabalho. Há um pouco de tudo. Ele sempre teve uma enorme, afiada e incorruptível consciência social, e com tudo o que tem que ver com ética não papa qualquer tipo de grupo. Não veio a este mundo para mentir e chama as coisas pelos nomes, como tem de ser. Está aqui o titular perdão. Muito amor, felicidade, gratidão. Lamentos sobre a dor dos jedis que andam acompanhados por gente má e a quem a vida não corre de feição. Montes de piadas sobre tudo e mais alguma coisa — Prine tem tanto mundo e já deve ter tido tantas conversas hilariantes —, vinhetas mais ou menos tragicómicas no meio de assuntos muito sérios. Encontra adjectivos encantadores (um hotel que é “swell”, um sushi bar que é “funky”), a tal coisa dos grandes e da capacidade de criar imagens vívidas. No fundo, cada canção é também um pretexto para arrumar os assuntos grandes da vida mais uma vez, em mais uma actualização, no caso mais depurada do que nunca.
O tipo tem uma canção com o nome dele feita pelos Low, e basta ouvi-lo de esguelha para perceber onde Will Oldham e Bill Callahan foram buscar tanto para as suas personagens. Dá realmente ideia de que aqui na Europa não lhe prestámos ainda grande atenção. Não que isso o rale muito, mas devíamos mesmo aproveitar enquanto anda por cá. E se nunca o ouviu acredite que pode começar já por aqui, que vale a pena. Um tesouro. Na última canção, When I get to heaven, ele explica o que vai fazer quando chegar ao céu. Não querendo estragar a surpresa por inteiro, envolve pedir uma vodka com ginger ale, fumar um cigarro com nove milhas de comprimento, montar uma banda de rock’n’roll e dar um beijo numa mulher bonita. Realmente soa a programão.