Foi-se o “all aboard!”, ficou a “deceção”
No chamado “vocabulário comum” confirma-se: não há unificação, é uma fraude e ainda por cima descarada.
Gastos os nossos melhores “welcome”, “hello”, “all aboard” e “goodbye”, ditados pela circunstância do primeiro Festival da Eurovisão em solo nacional, talvez seja altura de voltar à língua portuguesa. Até porque, tirando as manifestações de autocontentamento do costume (as celebrações, os saraus, as estatísticas que nos enchem os ouvidos com os muitos milhões de falantes e escreventes), a realidade é tão decepcionante quanto a classificação portuguesa no festival “comunicado” e falado em inglês.
Peguemos, por exemplo, no ensino. Seguindo as normas do acordo ortográfico de 1990 (AO90), o Dicionário Básico (Ilustrado) da Língua Portuguesa, da Porto Editora, explica isto aos petizes: “É possível escrever corretamente [sic] uma palavra de duas maneiras no caso em que essa palavra se pode pronunciar de duas maneiras.” E dá estes exemplos: “espectador (quando se pronuncia o c) e espetador (quando se não pronuncia o c)”; “carácter, característica, caracterização, caracterizar (quando se pronuncia o c) e caráter, caraterística, caraterizar (quando não se pronuncia o c).” Isto seria o primado da fonética no seu apogeu, ou seja, na sua máxima sublimação. Mas porque ficais por aí, senhores, porque sois tão tímidos? Seguindo os ditames da fala, cooperativa (há aí alguém que diga, mesmo, os dois “oo”?) devia poder escrever-se cuprativa ou mesmo comprativa (ouçam lá os falantes!); reestruturação devia poder escrever-se restruturação (quem pronuncia os dois “ee”?); dizer devia poder escrever-se dezer (e tantos assim o dizem!); ministro passaria a escrever-se menistro (porque assim correntemente se pronuncia); televisão ficava bem por tlevisão (não é invariavelmente mudo, na fala, o primeiro “e”?); formação podia escrever-se também fromação, porque muitos portugueses (até deputados!) assim o dizem, sem que os corrijam. Ah, isto sim, seria uma benesse para a língua portuguesa, para a sua simplificação, para uma real escrita fonética!
Não, isso não seria “welcome”. Melhor dizer já “goodbye”. A foneticização da escrita é um logro e o dito acordo ortográfico (o tal que ia uniformizar a ortografia portuguesa) é outro. Espreitemos, por um momento, o sítio do Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP), sediado em Cabo Verde, e onde é suposto estar o Graal do nosso idioma. Debaixo do título Vocabulário Ortográfico Comum da Língua Portuguesa (sublinhe-se o “Comum”) está esta frase: “Selecione [sic] a versão do VOC a usar.” E seguem-se oito bandeirinhas; ou seja, é comum mas cada país tem o seu! Em três bandeiras clica-se e não dá nada: Angola, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe (pormenor curioso: os dois primeiros não ratificaram o AO90; São Tomé ratificou-o mas não tem vocabulário que se veja). Os nomes dos restantes vocabulários também são curiosos. Enquanto três têm os nomes dos países a que dizem respeito (Vocabulário Ortográfico Cabo-Verdiano da Língua Portuguesa, Vocabulário Ortográfico Moçambicano da Língua Portuguesa e Vocabulário Ortográfico de Timor-Leste), o de Portugal é descrito apenas como Vocabulário Ortográfico do Português, em 2.ª edição; e o do Brasil como Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, em 6.ª edição. Assim, sem mais nada. Agora experimentemos procurar a palavra decepção ou deceção, a sua variante inventada, nos vocabulários disponíveis. O Brasil só aceita decepção; Portugal, Timor e Moçambique só aceitam deceção (e aqui o logro é total, porque os vocabulários de Moçambique e Timor copiam o português); e Cabo Verde aceita ambas as formulações. O que se passa com decepção (do latim deceptione-) passa-se com milhares de palavras (experimentem): não há unificação, é uma fraude e ainda por cima descarada.
Outro pormenor. Na descrição das funções do IILP diz-se o seguinte: “As atividades do IILP são planejadas conforme orientações gerais do Conselho Científico, formado pelas Comissões Nacionais dos Estados Membros, bem como do Comitê de Concertação Permanente da CPLP.” Mais: “O IILP promove um contato mais estreito entre os países e suas equipas técnicas.” Em pouco espaço, três termos estritamente brasileiros: “planejadas” (termo legítimo em Portugal mas em desuso há anos), “comitê” (aqui seria “comité”) e “contato” (que por cá se diz e escreve “contacto”). Instituto Internacional? Ou fraude monumental, que só subsiste devido ao torpor quase generalizado das gentes?