Na morte de Henrique Leonor de Pina, o homem dos Almendres
Meio século depois da descoberta do Cromeleque dos Almendres e da Anta Grande do Zambujeiro, o legado de Henrique Leonor de Pina está ao abandono. Outro arqueólogo, António Carlos Silva, deixa aqui um texto em jeito de testemunho para lembrar quem foi e alertar para o estado a que chegou o que este homem ajudou a revelar.
Henrique Leonor de Pina, professor e arqueólogo que nos anos 1960 estudou alguns dos emblemáticos monumentos megalíticos da região de Évora, nomeadamente a Anta Grande do Zambujeiro e os cromeleques dos Almendres e da Portela de Mogos, faleceu no passado dia 20 de Maio.
Natural de Almeirim, onde voltou a residir nos últimos anos de vida, Henrique Leonor de Pina frequentou os estudos liceais em Évora onde foi companheiro de figuras como Mário Ruivo, Lima de Freitas, Fernando Bragança Gil e, em particular de Galopim de Carvalho, a quem se deve, através das redes sociais, a divulgação da notícia do seu desaparecimento. Leonor de Pina, colaborou no início dos mesmos anos 60 com aquele conhecido geólogo em vários trabalhos de campo, nomeadamente na elaboração da Folha de Évora da Carta Geológica de Portugal na escala de 1:50 000, identificando e cartografando importantes sítios arqueológicos.
As suas escavações na Anta Grande do Zambujeiro, um dolmen de escala monumental única, e nos grandes recintos de menires dos Almendres e da Portela de Mogos, uma realidade arqueológica até então praticamente ignorada em Portugal, conferiram grande visibilidade social e cultural aos seus trabalhos, os quais conduziu sempre fora dos meios académicos e em estreita ligação com as entidades e populações locais, que ainda hoje conservam a sua memória.
Há muitas décadas arredado das lides arqueológicas por razões pessoais e profissionais, (foi professor na escola Machado de Castro e no Liceu M.ª Amália Vaz de Carvalho, entre outras) Leonor de Pina apenas interrompeu o silêncio a que se remeteu aquando da entrega formal ao Museu de Évora da importante colecção arqueológica recolhida nas escavações da Anta Grande do Zambujeiro. As suas palavras de então, em forma de entrevista publicada online no n.º 1 do Boletim Cenáculo daquele museu (inexplicavelmente inacessível de momento), conformam uma espécie de “testamento arqueológico” de uma carreira curta mas intensa.
Passado meio século, os monumentos que identificou, estudou e divulgou nos anos 60, nomeadamente o Cromeleque dos Almendres e a Anta Grande do Zambujeiro, verdadeiros ex-libris do megalitismo alentejano, constituem hoje focos importantes de atractividade turístico-cultural. Infelizmente, e com excepção de alguns investimentos municipais nos anos 90, estes sítios, pese embora estejam classificados como Monumentos Nacionais e atraiam diariamente centenas de visitantes, encontram-se escandalosamente entregues à sua “sorte”.
Se no caso dos Almendres, em Guadalupe, as implicações de tal abandono são menos evidentes, apesar do impacto negativo que representa o aumento exponencial de visitantes sem qualquer controlo, acompanhamento ou segurança (as queixas de assaltos acumulam-se na GNR, impotente para garantir a segurança nos acessos e estacionamentos), já no caso da Anta Grande do Zambujeiro, verdadeira “catedral do megalitismo português” que remonta ao quinto milénio antes de Cristo, a situação pode já ser classificada de catastrófica. A gigantesca estrutura megalítica de Valverde, exemplo raro mesmo a nível mundial das primeiras formas de arquitectura monumental, está em iminente colapso, pondo em risco a vida de quem a visita.
Em ambos os casos a inoperância das entidades da tutela, em primeiro lugar do Ministério da Cultura mas também do município, refugia-se na desculpa esfarrapada de que os monumentos se encontram em propriedade privada, circunstância que no passado não impediu nem as escavações de Henrique Leonor de Pina nem os grandes restauros dos anos 90 no Cromeleque dos Almendres, promovidos pela mesma câmara municipal e dirigidos por Mário Varela Gomes.
As insuficiências orçamentais e as regras dos financiamentos europeus não podem servir eternamente de desculpa para a incapacidade de fazer sentar à mesa os proprietários e as entidades responsáveis pela salvaguarda do património por forma a encontrarem-se as soluções contratuais que permitam promover as inevitáveis candidaturas aos fundos europeus, única resposta que as diferentes administrações parecem hoje ter para o cumprimento das suas responsabilidades em matéria de património cultural.
Mário Ventura Henriques, em reportagem assinada para o Diário Popular de 13 de Outubro de 1967, a propósito dos trabalhos de Leonor de Pina na Anta Grande e nos Almendres, terminava assim o seu texto, de forma enigmática, talvez fintando a censura, sobre a impotência do esforço individual: “Henrique Pina diz: 'O impacto é a nossa acção individual'. Mas a verdade é que o esforço individual quase sempre destrói o indivíduo. A anta ou o cromeleque constituem o resultado de um esforço altamente colectivizado, de uma consciência profundamente enraizada na massa. À obra de gigantes que o homem pré-histórico ergueu no Alentejo, o homem da nossa época responde com um trabalho de pigmeu. Ao grande exemplo de unidade que representa o monumento megalítico opõe-se hoje o esforço idealista do amador. Eis a contradição - resta encontrar a síntese.”
É óbvio, que meio século depois, estamos bem longe de encontrar a resposta para a contradição entre os mesquinhos interesses individuais e o interesse colectivo que representam estes testemunhos milenares.
António Carlos Silva, arqueólogo aposentado, Presidente da Assembleia de Freguesia de Valverde e Guadalupe