Nós e Roger Waters, aqui e agora
O alinhamento foi composto na sua maioria por canções dos Pink Floyd da década de 1970, mas, no óptimo concerto que o seu antigo baixista deu domingo na Altice Arena (haverá um segundo esta segunda-feira), elas serviram para agir no presente. "Fuck the pigs!", exortou.
Foi logo no final da primeira canção que Roger Waters, 74 anos que o corpo seco e a altura imponente não denuncia, caminhou até a um dos extremos do palco. Acenou ao público e ergueu o punho em sinal de união, de comunhão, de vitória. Acabávamos de ouvir Breathe, em interpretação imaculada no seu onirismo e melancolia, pela extraordinária banda que acompanha Waters. Ouvimos nela os versos que servem de mote àquilo que leva o antigo baixista dos Pink Floyd a querer continuar em palco, a querer continuar a tocar a música que criou ao longo das últimas cinco décadas. Aquilo que o leva a erguer o punho, no início, a bater com a mão no peito, no final, agradecendo emocionado ao público que lotou a Altice Arena este domingo, no primeiro dos dois concertos portugueses da digressão Us + Them.
Os tais versos, então. Dizem assim: “Run, rabbit, run / dig that hole, forget the sun / And when at last the work is done / Don’t sit down, it’s time to dig another one” – presos na máquina, continuamos, dia após dia, prisioneiros de algo que nos ultrapassa. A música aponta uma fuga e Roger Waters, 74 anos, acredita que a música pode acordar-nos, despertar-nos. Quando tudo terminou duas horas e meia depois, às 0h10, os confetti que caíram sobre a multidão tinham uma palavra inscrita: “Resist” – sim, é por acreditar que a música pode ser isso, resistência, que Roger Waters continua. Ao longo do concerto, o passado fez-se presente e entre Dogs e Pigs (three different ones), as canções que abriram a segunda parte do concerto, ambas incluídas originalmente em Animals, álbum de 1977, viu-se o presidente americano travestido de meretriz, em corpo de porco, com capuz do Ku-Klux-Klan, como bebé irritadiço, como figura de intervenção pop art satírica. Enquanto aquele boogie rock, cow-bell incluído, fazia o seu caminho, levitava por cima de nós esse clássico Floydiano que é o gigantesco porco insuflável – no dorso, a frase “mantém-te humano”, escrita em português e em inglês.
O concerto de Roger Waters foi um concerto que aliou o impacto directo de uma banda em palco com a ambição cénica que desde muito cedo norteou a criatividade do músico. Enquanto o porco insuflável levitava sobre o público, já tinha descido alguns metros acima dele uma estrutura replicando a fábrica da capa de Animals, em cuja fachada foram, a partir de então, projectadas imagens da banda, as imagens de Trump, imagens de cenários de guerra, palavras de ordem incitando à acção. Exemplar, neste concerto, foi a forma como se conjugaram as duas vertentes, harmonizando-se sem que uma subjugasse a outra. Sentimo-lo desde o início.
A esmagadora maioria do concerto compôs-se de clássicos dos Pink Floyd, mas ouvi-los e, principalmente, ouvi-los interpretados daquela forma, com intenção, bom gosto e uma fidelidade aos originais que não diminuía o seu impacto, não foi apenas homenagem a uma obra fulcral na história da música popular urbana. Aqui voltamos ao início do texto, ao Roger Waters de punho erguido, ou ao Roger Waters que cantou Welcome to the machine, a canção distópica de Wish You Were Here, com esgar dramático, ameaçador, adequadíssimo àquele pedaço rock cyborg apocalíptico que soa ainda mais profético em 2018. É tudo uma questão de contexto: e estas canções, escolhidas para dar corpo ao tema da digressão – a necessidade de união, empatia entre todos e reacção perante a barbárie da guerra, da finança, dos crimes de Estado, da xenofobia —, cresceram imponentes perante nós (mesmo se, por vezes, de forma paradoxal, Waters parece agir como líder a comandar as massas num comício, o que é contraditório com a ideia de liberdade de pensamento e liberdade individual que conduz o concerto).
Roger Waters alternou entre os momentos em que agarrou o baixo e aqueles em que, de microfone na mão, percorria o palco cantando, mimando o que o guitarrista Jonathan Wilson cantava (coube-lhe as partes originalmente cantadas por David Gilmour) ou incitando o público a reagir. O líder foi acompanhado por uma banda onde se destacava o baterista Joey Waronker, de um virtuosismo justo para as canções, nunca exibicionista, o guitarrista Dave Kilminster, fidelíssimo à escola Gilmour, ou o coro formado por Holly Laessig e Jess Wolfe, membros da banda americana Lucious e que, entre o dueto em The great gig in the sky ou os momentos em que pegaram em baquetas e, com dois timbalões de chão, acentuaram o tom marcial de um par de canções, nunca foram personagens secundárias em palco. Com este Roger Waters determinado e uma banda hábil e entusiasta, o concerto fez sobressair o melhor que tem esta música.
Dividido em duas partes, com um intervalo de vinte minutos a separá-las, o concerto de foi uma extraordinária prova de vida. Ouvimos o space-rock tumultuoso de One of these days, guiado por aquela titânica linha de baixo, ouvimos a cristalina Time e The last refugee, uma das canções do recente álbum de originais de Waters, Is This The Life We Really Want? (2017), e vimos os jovens do Centro Social Comunitário da Flamenga, em Lisboa, acompanharem Another brick in the Wall. Primeiro de cabeça tapada por capuz e vestindo fatos laranja de prisioneiros, depois de rosto destapado, dançando livres nas t-shirts negras onde se lia a palavra-chave: “Resist”.
No início da segunda parte do concerto, a banda, onde se inclui também, por exemplo, Bo Koster, teclista dos My Morning Jacket, reuniu-se em volta de uma mesa onde eram servidas flutes de champanhe. Vestiam máscaras de porcos com várias expressões, suínos demasiado humanos como no Triunfo dos Porcos de Orwell. Grunhiam e brindavam e um deles (Waters) ergueu um cartaz – “Pigs rule the world”. Acto contínuo, libertou-se da máscara e, rosto humano encarando-nos de frente, ergueu outra palavra de ordem: “Fuck the pigs!”. O mote sugerido desde início concretizava-se. Do diagnóstico ao combate.
Viriam então depois as longas suites de Dogs e Pigs (three different ones), chegaria a intemporal Money e a obrigatória Us and them.The lunatic is on the grass, frase inicial de Brain damage, anunciou a caminhada para o final com Eclipse, enquanto se formava no ar, em laser, o icónico prisma de Dark Side of the Moon. O encore chegaria, depois da apresentação da banda, depois das vénias, com palavras contra a intervenção e política israelita na questão palestiniana. Depois, discursou sobre como apenas o acto de amar pode abrir brechas na barreira erguida entre nós e os outros. Wait for her, Oceans apart, Part of my died, pedaços de folk acústica que encerram o último álbum a solo, serviram de antecâmara para a despedida com Confortably numb, cantada por Jonathan Wilson, dono de uma muito respeitável carreira a solo (“o hippie da banda”, como apresentado por Waters). Como aconteceu mais vezes ao longo do concerto, foi acompanhada em coro pelo público.
Já toda a banda abandonara o palco e Roger Waters lá continuava. Punho erguido, mão batendo no peito. É por isto que ele, 74 anos, continua em palco. Acredita que tem razão. Acredita que a sua música faz acreditar. Acredita nela. Us + Them, verdadeiramente.