As questões de consciência que dão dinâmica à “geringonça”
Enquanto uns temas se aproximam das decisões finais, outros tentam trilhar um caminho que os leve ao Parlamento. Os próximos meses prometem muita discussão em torno de direitos individuais, que a maioria de esquerda tem mantido na agenda. O P2 falou com protagonistas do debate e faz o ponto da situação de cinco questões controversas que estão em cima da mesa.
Os temas de consciência como a eutanásia, identidade de género, barrigas de aluguer, legalização da cannabis para uso terapêutico ou até a prostituição não constam dos acordos que permitiram a chamada “geringonça”, mas têm-se revelado uma espécie de combustível para a manter em andamento. O recentramento da direita e o facto de o PS trilhar agora um caminho mais à esquerda trouxeram para a agenda política assuntos e até formas de os debater que seriam impensáveis noutro cenário político.
Se outros governos socialistas foram berço para avanços fundamentais como a descriminalização do consumo de drogas ou a lei da identidade de género, a actual conjuntura de esquerda que alberga o Bloco é um ninho aconchegante para novos avanços em temas muito controversos. Questões como a eutanásia ou os avanços na área das drogas com o acesso à cannabis, ou ainda da identidade de género com o fim da obrigatoriedade do relatório médico, são exemplos de como os socialistas estão a tentar aproximar-se de nichos do eleitorado mais à sua esquerda.
Mas são também o reflexo de alguma vontade de agradar aos parceiros que lhes dão apoio parlamentar. Afinal, as matérias de consciência e de direitos pessoais não pesam no orçamento como as medidas económicas e sociais a que era urgente dar resposta nos primeiros anos.
António Costa vai deixando margem para o PS actuar no Parlamento mesmo que sejam matérias com que os respectivos membros do Governo estejam em desacordo. Por exemplo, o ministro da Saúde já afirmou que não concorda com a eutanásia alegando a sua condição de médico, mas não vê qualquer problema em aplicar no Serviço Nacional de Saúde o que a Assembleia da República decidir.
À direita, algo de novo
Os argumentos e os posicionamentos da direita vão também mostrando aqui e ali mudanças suaves. Desapareceu, por exemplo, a defesa de um referendo sobre a eutanásia, como aconteceu com o aborto.
Em alternativa, o CDS assumiu a recusa da eutanásia lutando pela defesa dos cuidados paliativos de qualidade e pela consagração dos direitos dos doentes em fim de vida. Os centristas fizeram finca-pé para discutirem, antes da eutanásia (que vai a plenário no dia 29), a forma como se alivia o sofrimento de quem está à beira da morte. O tema divide o PSD: Rui Rio considera que é um assunto de consciência e dará liberdade de voto.
Entre os sociais-democratas, a abertura vai-se mostrando precisamente na maior liberdade de voto ou na aceitação de escusas em que seja cumprida: foi uma parte da bancada do PSD que permitiu a aprovação da nova lei da procriação medicamente assistida extensível a todas as mulheres e das barrigas de aluguer, e foi a deputada Teresa Leal Coelho que se juntou à esquerda na identidade de género. Mas não só. No último congresso, o PSD aprovou uma moção que defende uma estratégia de “legalização responsável do uso recreativo de cannabis em Portugal” — muito semelhante, aliás, a uma da JS aprovada no congresso socialista de 2016.
O P2 procurou fazer o ponto da situação destes cinco temas com alguns dos protagonistas que, de uma forma mais pública ou mais recatada, têm ajudado a estimular a discussão. E serão desafios a que o Presidente da República terá que dar resposta a curto ou médio prazo.
M.L.
Eutanásia
Quando a consciência pesa mais do que o partido
Depois do encarniçado, ainda que intermitente, debate dos últimos largos anos, a despenalização da eutanásia afigura-se como um daqueles assuntos cujo desfecho pode ficar decidido por apenas um voto. “Nesta votação tão renhida, todos os votos contam”, antecipou o deputado do Bloco de Esquerda (BE) João Semedo, médico e um dos “rostos” desta causa, dizendo-se confiante na aprovação que acredita ser tradutora “da vontade popular, que parece ser favorável à despenalização da morte assistida”.
Com o CDS/PP frontalmente contra e o PCP teimosamente remetido ao silêncio, o BE e o PAN foram os primeiros a avançar com projectos de lei. Seguiram-se o PS e os Verdes e, segundo adiantou ao P2 a deputada socialista Maria Antónia Almeida Santos, o debate deverá concluir-se “até ao final da presente sessão legislativa”. Falta saber se, passados os crivos das votações na generalidade e na especialidade, a lei não esbarrará no veto do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, um católico declarado, cuja ponderação poderá fazer recuar o processo.
No xadrez político da AR — e a não ser que o PCP se posicione, entretanto, a favor da despenalização — a liberdade de voto na bancada social-democrata fará toda a diferença. O actual líder do PSD, Rui Rio, que foi um dos subscritores da primeira petição pelo “sim” à despenalização da eutanásia, tal como a ex-ministra da Justiça e actual deputada Paula Teixeira da Cruz, alega tratar-se de um assunto que “não é político” mas “de consciência”. Por outro lado, o facto de o PS se preparar para apresentar um projecto de lei a favor da despenalização não garante à partida os 86 votos favoráveis, já que também entre os socialistas vigorará a liberdade de voto. Assim, o desfecho da votação na generalidade agendada para o dia 29 deverá permanecer uma incógnita até ao final. E, ainda que o “sim” passe, nada garante que a discussão em sede de especialidade chegue a bom porto antes do final da legislatura.
Cuidado com as palavras
A discussão em torno da despenalização da eutanásia em Portugal deve muito a Laura Ferreira dos Santos. Antes de morrer, em Dezembro de 2017, tinha então 57 anos, a professora aposentada da Universidade do Minho, escreveu centenas de artigos reclamando, como ela dizia, “o direito a não morrer aos bocadinhos”. Na génese do movimento que criou, o Direito a Morrer com Dignidade, estava o convite que lhe fora dirigido pelo médico João Ribeiro Santos, em 2009, quando era ainda director do Serviço de Nefrologia do Hospital Curry Cabral, em Lisboa, por ter visto reunidas nela as qualidades necessárias a fazer avançar a discussão. Laura, que então já tinha escrito o livro Ajudas-me a Morrer? A Morte Assistida na Cultura Ocidental do século XXI, passou os anos seguintes a bater-se pelo direito dos doentes incuráveis e em sofrimento a serem medicamente assistidos na sua decisão de antecipar a morte. Logo na primeira reunião para definir o embrião do movimento, no Porto, em Novembro de 2015, juntaram-se-lhe apoios como o do realizador António-Pedro Vasconcelos, o psiquiatra Júlio Machado Vaz, o cientista Alexandre Quintanilha, mas também Francisco Louçã e José Júdice. Desse encontro, foi do bloquista João Semedo a frase mais aplaudida: “Se os mortos falassem, há muito que a morte assistida estaria despenalizada.” Ao P2, o médico recusa enfiar a eutanásia nos espartilhos partidários ou religiosos. “É uma questão de direitos humanos”, situa.
De debate em debate, a causa foi somando outros apoios sonantes como os das escritoras Hélia Correia e Eduarda Dionísio, do economista Daniel Bessa ou da actriz Lia Gama, além da criminologista Teresa Pizarro Beleza, do músico Sérgio Godinho e do ex-director-geral da Saúde, Francisco George.
Foi pela mão do BE e do PAN que o manifesto em defesa da despenalização da morte assistida se transformou em petição e, depois, em projecto de lei. Depois de o BE ter apresentado o seu anteprojecto lei, incluindo a eutanásia (quando o fármaco letal é administrado por um médico) e o suicídio medicamente assistido (quando é o próprio doente a administrar a substância), em Fevereiro de 2016, seguiu-se, uns dias depois, o projecto do PAN — por enquanto, o único a ter sido objecto de parecer (negativo) por parte da Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Só mais de um ano e muitos debates depois é que o BE apresentou, em Fevereiro passado, a versão final do seu projecto-lei regulando as condições em que deixa de ser punível “a antecipação da morte por decisão da própria pessoa com lesão definitiva ou doença incurável e fatal e que se encontra em sofrimento duradouro e insuportável”. Sujeita ao parecer favorável de até três médicos, os pedidos para antecipação da morte têm de ser reiterados até cinco vezes e estão circunscritos a pessoas maiores de idade, nacionais ou legalmente residentes no território, na proposta dos bloquistas.
Escassos dias depois de a iniciativa bloquista ter sido apresentada, 190 profissionais de saúde subscreveram uma carta contra a legalização da morte assistida para ser entregue pelo movimento Stop Eutanásia aos deputados da Assembleia da República. Este movimento tem, de resto, agendada uma manifestação contra a eutanásia, no dia 24, em São Bento. Entre os subscritores daquela carta, estão nomes como Germano de Sousa, Margarida Neto, Pedro Afonso e Gentil Martins. Ao P2, o cirurgião pediátrico, que já antes subscrevera uma carta em que cinco ex-bastonários da Ordem dos Médicos se opõem à eutanásia, argumentou que o juramento a que os médicos estão obrigados proíbe tais práticas. “O código ético continua a obrigar os médicos a guardar o máximo de respeito pela vida humana”, sustenta, para distinguir entre o que é “suspender um tratamento inútil, que só está a prolongar uma vida de sofrimento”, e o que é aceder a matar alguém: “Para mim, é perfeitamente claro que é de um assassinato que se trata.”
Reconhecendo que todos aspirarão “a morrer com o máximo de tranquilidade”, o médico lembra que “hoje não há praticamente sofrimento físico dos doentes porque há medicação suficiente para o aliviar”. Por outro lado, a experiência dos outros países onde a eutanásia está legalmente prevista, comprovou, na opinião do médico, que qualquer alteração à lei abrirá “uma rampa deslizante”. “Mesmo nos países onde a eutanásia foi legalizada com um rigor extremo na fase inicial, hoje em dia é um ver-se-te-avias”, conclui, repudiando igualmente a hipótese de a matéria poder vir a ser referendada.
Esta hipótese parece também afastada pelo próprio CDS/PP, cuja líder, Assunção Cristas, procurou arrumar o assunto ao defender que o Parlamento não tem legitimidade para legislar sobre a matéria, dado que esta estava ausente dos diferentes programas eleitorais. Para a deputada Maria Antónia Almeida Santos, pelo contrário, “ao fim destes dois anos de debate na sociedade, criou-se uma maturidade suficiente” para levar a morte assistida a votos. O projecto do PS, sem diferir muito dos já apresentados em termos de princípios que restringem a possibilidade a “pessoas adultas, colocadas perante um diagnóstico fatal e um sofrimento extremo, e que sejam capazes de reiterar, de forma consciente, essa vontade”, procura acautelar os reparos que, entretanto, foram sendo feitos, nomeadamente pelo Conselho Superior de Magistratura e pela Ordem dos Enfermeiros. “Houve muita cautela, muito cuidado, na escolha das palavras que nos pareceram capazes de dissipar os problemas encontrados”, precisou Maria Antónia Almeida Santos, sobre um projecto que coloca cinco crivos, desde que um doente terminal requere ajuda para antecipar a morte até à consumação do acto, e inclui ainda uma garantia suplementar: a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde é chamada a fiscalizar o processo e pode suspendê-lo.
Quanto à oposição que se espera “de alguns sectores” da Igreja Católica, e cuja campanha pelo “não” começou já a fazer-se ouvir nos altares, a deputada diz-se descansada: “A sociedade portuguesa já demonstrou que tem uma maturidade muito maior do que aquela que demonstraram alguns sectores da Igreja Católica, que procuram diabolizar e instalar a ideia de que vem aí uma desgraça que, se atendermos ao que se passou com a despenalização da interrupção da gravidez ou da descriminalização do consumo de drogas ilícitas, nunca se confirmou.” N.F.
Descriminalização da prostituição
Quanto pesa o abolicionismo no PS?
A prostituição promete voltar aos títulos dos jornais se, no congresso marcado para os dias 25 a 27 de Maio, o PS se comprometer com uma proposta para regulamentar aquela actividade, como espera que possa acontecer Ivan Gonçalves, líder da Juventude Socialista. A primeira vitória foi alcançada quando, em Março de 2017, a comissão nacional do PS aprovou uma moção no sentido do enquadramento legal do comércio sexual. Porém, dificilmente os socialistas se disporão a “comprar” esta guerra.
Apesar de o PS contar com o apoio do BE — o único partido a ter defendido no manifesto eleitoral das últimas legislativas “o enquadramento legal do trabalho sexual, reconhecendo direitos em termos de protecção social e mecanismos de protecção contra a violência” —, o PCP tem-se posicionado em conferências e debates contra o que qualifica como uma legitimação da opressão e violência sobre as mulheres e a Igreja Católica idem aspas. Acresce que, mesmo no departamento de mulheres socialistas, o peso do chamado “abolicionismo”, que aponta para a criminalização dos clientes como forma de dissuadir a prática da prostituição, não é negligenciável.
“Pela JS, há condições claras para avançarmos com uma iniciativa legislativa, no sentido de dignificar a vida e criar mecanismos legais de protecção dos que decidem no exercício da sua liberdade individual recorrer ao trabalho sexual como forma de ganhar a vida, e é isso que vamos propor no próximo congresso do PS”, enuncia o líder dos jotas socialistas, Ivan Gonçalves. É uma bandeira que a JS não se diz disposta a largar, sem contemplações com os “tacticismos e cálculos políticos” que ameaçam desfecho negativo.
Certo é que, sem o PCP, o PS e o Bloco, a iniciativa não tem força para avançar. A não ser que, à semelhança do que aconteceu com outras causas controversas, como a eutanásia e a adopção por casais do mesmo sexo, a liberdade de voto confira elasticidade à actual correlação de forças no Parlamento. Por enquanto, os defensores da regulamentação da actividade vão tentando manter o assunto na agenda para irem granjeando apoios e abrindo fissuras na barricada mais conservadora e hostil. “Para já, não vamos avançar com nenhuma iniciativa legislativa mas estamos disponíveis para promover o debate e as audições sobre esse tema que tenha, por um lado, em conta as experiências noutros países e, por outro, a necessidade de reforço e protecção dos direitos laborais e sociais dos trabalhadores do sexo”, resume o deputado José Soeiro, do BE.
O sexo e o trabalho
Do lado dos que defendem a descriminalização do trabalho sexual e o fim da punição dos que lucram com a facilitação do exercício da prostituição, o que implicaria em termos práticos extirpar o crime de lenocínio do Código Penal, estão académicos e activistas. A psicóloga e investigadora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação Alexandra Oliveira bate-se há anos por esta causa. Doutorou-se com uma dissertação baseada numa etnografia sobre prostituição de rua, mas o seu interesse pela sexualidade “fora da norma”, pelo desvio e respectiva reacção social, vem de muito antes. “Na adolescência, quando o meu mundo ficou maior do que a minha família, ganhei uma noção muito clara de que o comportamento das mulheres era muito controlado em termos sexuais. Uma mulher que não se comporte de acordo com aquilo que é esperado dela em termos sexuais — e que é grosso modo, embora as coisas evoluam, a monogamia, a passividade sexual, a heterossexualidade, o sexo com fins reprodutivos — é facilmente rotulada como prostituta. Se dermos um passinho ao lado em termos sexuais, cai-nos logo o estigma em cima. Mas o meu interesse nesta matéria da prostituição começou quando li o livro Puta de Prisão, de Isabel do Carmo e Fernanda Fráguas. A partir das histórias de 50 prostitutas que ali eram contadas, vi uma versão humanizada que nunca me tinha sido dada a ver.”
Agora, aos 48 anos, Alexandra não tem problema em conciliar o seu papel de cientista social com o activismo em defesa da descriminalização do trabalho sexual, logo da retirada do crime de lenocínio do Código Penal. “Quando uma mulher, sozinha ou em cooperação com outras mulheres, aluga uma casa para exercer trabalho sexual, o senhorio aumenta os preços com o argumento de poder ter um dia de fazer face a despesas legais, se vier a ser acusado de lenocínio. E tudo isso são consequências de o lenocínio ser crime”, expõe.
Antes de avançar com os argumentos, abre um parêntesis para lembrar que a coacção e o abuso sexual, o tráfico de pessoas, o lenocínio e o recurso à prostituição de menores estão autonomamente tipificados no Código Penal e assim continuariam. “Conhecemos mulheres que estão acusadas de lenocínio porque trabalham em cooperação com outras mulheres num apartamento e aquela em nome da qual estava o contrato de arrendamento foi acusada de estar a facilitar a prostituição de outras pessoas. E aquela até será a forma mais justa de trabalhar porque as despesas são partilhadas e ninguém está a explorar ninguém, a receber os lucros de ninguém”, defende a investigadora.
No limite, Isabel Soares, da Porto G, uma equipa de proximidade que intervém na área do trabalho sexual em contextos de interior, promovendo práticas sexuais de menor risco para prevenir o contágio por VIH/sida e a mobilização cívica dos trabalhadores do sexo, essa mulher poderia ser acusada de lenocínio. “Vamos a casa das pessoas, distribuímos material profiláctico como preservativos e, nesse sentido, isto pode ser lido como uma forma de facilitação da actividade”, enquadra Isabel, referindo-se a prostitutas que “são mães e que vivem aterrorizadas com a possibilidade de o parceiro usar esse argumento em tribunal para ficar com a guarda do filho”.
Aos 38 anos, muitos dos quais imersos na ajuda aos trabalhadores do sexo, Isabel sente necessidade de esclarecer que não é a favor nem contra o trabalho sexual. “Sou a favor das pessoas que fazem trabalho sexual, das suas opções, dos seus direitos”, resume. E a consequência imediata disto seria reconhecer-lhes então o direito à protecção social. Não necessariamente enquanto trabalhadoras independentes. “Uma trabalhadora do sexo devia também poder trabalhar por conta de outrem, o que hoje não é possível. Uma mulher que trabalhe num bar de alterne ou numa casa de massagens, onde tem um horário para cumprir, ordenado ao fim do mês e recebe ordem das chefias, não tem a quem fazer queixa se se sentir explorada, não pode ficar em casa com baixa médica paga se ficar doente, não tem direito a licença de maternidade paga como as outras trabalhadoras”, precisa Alexandra Oliveira, aproveitando para acusar os sindicatos de estarem “a fechar os olhos aos milhares de trabalhadores do sexo em Portugal que não têm qualquer defesa nem qualquer apoio”.
Isabel Soares iniciou-se nesta área em Itália, onde trabalhou numa associação que ajudava prostitutas que eram exploradas por redes de tráfico humano. “Regressei a Portugal, formatada por esta ideia.” Não fosse o confronto com a realidade portuguesa a ter obrigado a reposicionar-se, porque contactou com trabalhadores do sexo que o são no exercício da sua liberdade, Isabel estaria hoje eventualmente menos distante do que está dos argumentos pró-abolicionistas perfilhados pelo PCP e por instituições como O Ninho, uma instituição particular de solidariedade social que intervém há décadas na prostituição de rua, numa lógica de abrir caminho para que as mulheres deixem essa actividade. “Que sinal vamos dar aos jovens se avançarmos com esta ideia de dar poder legítimo a que uma pessoa compre outra como se fosse um objecto?”, questiona a assistente social Conceição Mendes, uma das vozes da instituição, sobretudo desde que a ex-directora, Inês Fontinha, se reformou.
Em 35 anos de trabalho n’O Ninho, Conceição garante que nunca ouviu a nenhuma mulher que gostava de ser prostituta. Enquadrar legalmente esta actividade equivaleria assim a permitir “um Estado proxeneta” que autorizaria “os grandes empresários do sexo a ganharem dinheiro explorando as mulheres”. “Tráfico, exploração e prostituição são diferentes faces da mesma moeda”, acrescenta ainda Conceição Mendes, para sustentar que “o aprisionamento emocional e psicológico é por vezes tão forte como o físico”. Daí que, no seu entender, a haver alguma alteração legal, deverá ser no sentido de criminalizar o cliente, para que “os próprios homens percebam que alguma coisa não está bem se têm necessidade de comprar alguém para fazer sexo”.
A oposição comunista à regulamentação da actividade levou recentemente Fernanda Mateus, da comissão política do comité central do PCP, e equipará-la à “legitimação dos mecanismos de pressão, exploração e violência sobre as mulheres” e a recomendar que sejam retiradas dos documentos emanados pelos serviços públicos terminologias que associem a prostituição a “trabalho sexual” e as mulheres prostituídas como “trabalhadoras do sexo”. N.F.
Gestação de substituição
Discussão voltará “até ao final da legislatura”
O chumbo do Tribunal Constitucional (TC) a algumas normas da lei que regula a gestação de substituição foram um revés pesado, mas, se depender do Bloco de Esquerda, a lei vai ser reescrita e o recurso a uma barriga “emprestada” vai voltar a ficar acessível às mulheres que não possam engravidar, por não terem útero ou por terem uma lesão ou doença neste órgão que o impeça.
“O modelo de gestação de substituição defendido pelo legislador, para situações de doença grave e sempre de forma altruísta, não ofereceu dúvida constitucional”, situa o deputado bloquista Moisés Ferreira, um dos porta-vozes desta causa. Quanto às normas consideradas inconstitucionais, e que, na prática, travaram a maternidade nomeadamente às candidatas a uma técnica de procriação medicamente assistida com recurso a dador anónimo, o deputado lembra que “dizem respeito a matérias perfeitamente acondicionáveis numa futura legislação”. Quando? “Temos de continuar as conversas com os restantes grupos parlamentares para encontrar uma solução, mas, no que depender de nós, será até ao final da legislatura”.
A possibilidade de uma mulher sem útero ou impedida de engravidar recorrer à barriga de outra mulher para ser mãe dividiu a esquerda e a direita no Parlamento. Foi, aliás, por iniciativa do CDS/PP e de alguns deputados do PSD que o TC se pôs a analisar a constitucionalidade de uma lei que já vigorava há mais de um ano. E, no âmbito da qual, uma mulher de 50 anos recebera luz verde da Comissão Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) para gerar o neto, em substituição da sua filha, que ficou sem útero na sequência de uma endometriose.
A notícia esteve em todos os jornais, em Dezembro de 2017 por se tratar do primeiro caso de gestação de substituição em território português. Outros oito pedidos se seguiram, mas, com este travão do TC, puderam avançar apenas os casos em que tinham sido iniciados já os processos terapêuticos.
O prazo de arrependimento da gestante de substituição, que a lei previa pudesse ocorrer até às dez semanas de gravidez, mas que, segundo o TC, deverá manter-se até ao final da gravidez, foi uma das normas consideradas inconstitucionais. Outra relaciona-se com a “excessiva latitude” quanto à impossibilidade de o casal beneficiário impor restrições comportamentais à gestante. A regra do anonimato dos dadores de esperma — nos casos mais alargados da procriação medicamente assistida — e da gestante de substituição também mereceu censura constitucional, dada a “restrição desnecessária aos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade das pessoas nascidas” através destes métodos. “No tocante à gestação de substituição, sendo o modelo altruísta, o mais provável é que a gestante seja alguém da família ou uma amiga muito próxima, logo a possibilidade de a criança saber quem a gerou iria colocar-se de qualquer maneira”, desvaloriza Moisés Ferreira.
“Empurrados para a clandestinidade”
Para lá das reticências do TC, este compasso de espera — que, na opinião de alguns, decorre da “propensão conservadora” da maioria dos juízes que compõem o actual elenco do órgão presido por Costa Andrade — pode ser aproveitado para melhorar uma lei que, na opinião do obstetra e antigo presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), Miguel Oliveira da Silva, era “má e cuja regulamentação é ainda pior”.
Para o médico, cuja voz foi preponderante no primeiro veto presidencial, é inquestionável que deve ser consagrado legalmente o direito da criança de saber as condições em que foi gerada. “Discutem-se por esse mundo fora novas regras de filiação e de paternidade e a lei portuguesa tem pelo menos de acautelar esse direito de a criança saber que foi gerada numa gravidez de substituição e por quem”, aponta o obstetra. Quanto ao argumento de que tal direito também não existe na adopção, Miguel Oliveira da Silva considera-o uma falácia. “Uma coisa é uma mãe que abandona uma criança e outra é estarmos a planear a frio uma criança que ainda não existe negando-lhe à partida o direito a conhecer as suas origens, direito esse que está, de resto, previsto na Constituição.”
A segunda falha, na percepção deste especialista, prende-se com a não obrigatoriedade de acompanhamento psicológico à gestante durante a gravidez e, sobretudo, após o parto, “altura em que a mulher tem de entregar a criança para nunca mais a ver”.
Um terceiro “erro” prende-se com a possibilidade de o recurso à gestão de substituição poder ser feito por não residentes no território português. “Em Inglaterra, o que a lei diz é que os três intervenientes — o casal e a gestante — têm de viver e ser residentes no país. Devíamos seguir esse modelo para impedir que as pessoas venham cá, engravidem e vão-se embora a seguir, sem qualquer hipótese de acompanhamento daquela criança”, preconiza o especialista, para sugerir, por último, que a gestante deveria ver reconhecido o direito a amamentar a criança: “Permitir que uma mulher tenha uma criança para a entregar a um casal e dar-lhe a seguir medicamentos para secar o leite é má medicina e é má ética.”
A lei da gestação de substituição recua a 2012, ano em que foi constituído na comissão parlamentar de Saúde um grupo de trabalho com a missão de conduzir os trabalhos de especialidade. Aprovada em Maio de 2016, com os votos do BE, PS, PEV, PAN e de 24 deputados do PSD (dois deputados do PS votaram contra, juntamente com o CDS/PP e do PCP), ficará para a história como tendo sido aquela em que Marcelo Rebelo de Sousa se estreou no seu direito de veto, devolvendo o diploma ao Parlamento com a recomendação de que este ponderasse acolher as recomendações que haviam sido emitidas em 2012 pelo CNECV, então ainda presidido por Miguel Oliveira da Silva, nomeadamente quanto ao direito de a criança conhecer as condições em que foi gerada e à necessidade de haver disposições em caso de ocorrência de malformações ou doenças fetais.
Regressada ao Parlamento, a lei foi alterada em alguns dos seus aspectos e aprovada novamente. O processo de regulamentação também teve um caminho difícil, que levou a que a lei entrasse em vigor apenas em Agosto do ano passado. “Foi muito frustrante”, recua a presidente da Associação Portuguesa de Fertilidade (APF), Cláudia Vieira, para quem este chumbo do TC é “um retrocesso vergonhoso”.
“Sem uma lei, a gestação de substituição vai continuar a ser feita, ou por via de negócios ilícitos em Portugal ou recorrendo ao estrangeiro”, considera Cláudia Vieira, lamentando que “todos os que, por razões de saúde, se vêem impossibilitados de gerar uma criança” tenham sido “novamente empurrados para a clandestinidade”, no caso de se recusarem a “resignar-se a uma vida sem filhos”. N.F.
Cannabis
Uso recreativo não é para já, o terapêutico, sim
Será um grande passo em frente no uso da cannabis em Portugal, embora com um âmbito um pouco mais reduzido do que o Bloco e o PAN — Pessoas-Animais-Natureza pretendiam: dentro de poucos meses, deverá ser possível o acesso àquela droga nas farmácias, para uso terapêutico, sobretudo destinado a doentes em cuidados paliativos ou em tratamentos oncológicos. Pelo caminho ficou a pretensão do autocultivo, permitido a quem tivesse prescrição e unicamente para os seus fins clínicos, precisamente para contrariar as críticas de que foi alvo de que estava a abrir a porta, de forma encapotada, ao uso recreativo ou social daquela droga. “Essa é uma outra discussão. Que queremos fazer, sim, de uma forma separada, para a qual não temos timing”, diz ao P2 o deputado Moisés Ferreira. E lembra que o Bloco já apresentou por duas vezes a proposta para legalizar a cannabis para consumo pessoal e o respectivo enquadramento legal para os chamados “clubes sociais”, que foi chumbada por PSD, CDS e PCP e teve a abstenção do PS e do PEV em 2013 e 2015.
Virtudes e defeitos
O fim do processo legislativo da cannabis terapêutica não estará por muito tempo: as votações serão feitas na próxima quarta-feira e tudo indica que tanto o PS como o PSD e PCP irão dar o seu aval ao texto de substituição apresentado no grupo de trabalho criado para discutir os projectos (muito semelhantes) de BE e PAN. Ambos tinham descido à comissão de Saúde sem votação depois de um debate em plenário em que as críticas assentaram precisamente na questão do autocultivo — rejeitado também pela Ordem dos Médicos, Infarmed e pelo ministro da Saúde. Quem fez lobbying pela solução do autocultivo (autorizado por licença) foi a Cannativa — Associação de Estudos sobre Cannabis. Essa possibilidade foi retirada, acrescentando-se a necessidade de o Infarmed criar um gabinete específico sobre a aplicação da cannabis e a obrigação de o Estado fazer campanhas de informação sobre a substância. A disponibilização só pode ser feita por prescrição médica em receita especial, em farmácia, e o doente constará de uma base de dados específica.
Apesar de ter feito uma audição pública com médicos de diversas áreas (medicina geral, oncologia, psicologia, neurologia), enfermeiros, e diversas entidades, foi de Espanha que veio a principal inspiração para o Bloco: Javier Pedraza, licenciado em Medicina e Cirurgia que estuda as consequências das aplicações terapêuticas da cannabis e dirige vários gabinetes terapêuticos de associações canábicas espanholas. É um acérrimo defensor do uso de cannabis — da variedade da Cannabis sativa, de que se retiram o tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD) — para a redução da dor em casos do foro oncológico e neurológico, em casos de epilepsias.
A ideia é contrariada pelo professor de Terapêutica Geral, Walter Osswald, do Instituto de Bioética da Universidade Católica do Porto, que prefere dar mais importância aos efeitos secundários da utilização da cannabis — psiquismos, habituação e toxicodependência — do que aos testemunhos que classifica como “pouco consistentes” sobre os efeitos terapêuticos dos canabinóides no tratamento, por exemplo, dos vómitos causados pela quimioterapia, ou da redução da dor em várias doenças. Diz mesmo que a proposta do Bloco é “bizarra” e que o Parlamento é “incompetente em matéria de terapêutica”.
Agora que o uso terapêutico está quase garantido, o próximo passo será legislar sobre o uso recreativo — para o qual até há abertura noutros partidos além do Bloco. Em Fevereiro, no congresso do PSD, foi aprovada uma moção do deputado Ricardo Baptista Leite e do antigo deputado André de Almeida, ambos médicos, sobre a “estratégia para a legalização responsável do uso de cannabis” — agora compete a Rui Rio dar-lhe andamento (ou não). A larga maioria das propostas é muito parecida com a que o socialista João Torres levara ao congresso do PS de 2016 quando ainda liderava a JS. Ao P2, João Torres defende um debate sobre o assunto, lembra que as instâncias internacionais discordam do autocultivo e que Portugal vive num “limbo”: “O consumo existe e é permitido, não pode haver cultivo, mas há comercialização”, o que motiva o tráfico.
Ricardo Baptista Leite defende que a legalização do uso social “teria um impacto significativo na redução do consumo pela dissuasão, eliminava o tráfico e permitia reduzir os riscos de saúde pública pela aposta na qualidade (com a limitação da quantidade de THC) e gestão da quantidade”. Seria preciso regulamentar a produção, distribuição e venda, feita em farmácia, apenas a maiores de 21 anos, através de uma base de dados, com preço regulamentado e ajustado ao da rua; a receita do imposto seria canalizada para políticas de dissuasão e combate ao narcotráfico. O deputado do PSD acredita que esta é uma discussão para a próxima legislatura. M.L.
Identidade de género
Porque têm os “trans” de provar quem são?
Alice Cunha não se cansa de repetir que o Presidente da República lhe estragou o jantar de aniversário: estava a sentar-se à mesa do restaurante com a família e amigos quando soube do veto à nova lei da autodeterminação da identidade de género. Aos 22 anos, a última meia dúzia assumindo-se como mulher “depois de sair dos vários armários”, Alice é uma das vozes do activismo jovem “trans” que na última semana organizou uma concentração frente ao Palácio de Belém e outra nas escadarias do Parlamento. Aluna do último ano de Estudos Artísticos — Artes do Espectáculo na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, integra os movimentos Panteras Rosa e Transmissão. Revoltada com o veto político de Marcelo “sem qualquer base constitucional”, Alice critica também o “furor mediático” que se concentrou na descida para os 16 anos do limite de idade para a mudança de nome e deixou de lado a “conquista da despatologização”. “Ouviram supostos especialistas quando podiam ter-nos ouvido a nós, que somos os nossos próprios especialistas e sabemos exactamente quem somos, muitas vezes bem antes dos 16 anos.”
Actualmente, a mudança do género e nome no Registo Civil é permitida apenas a maiores de 18 anos, sendo imprescindível a apresentação de um relatório médico, de uma equipa multidisciplinar de sexologia clínica que inclua pelo menos um médico e um psicólogo, que comprove o diagnóstico de perturbação de identidade de género. A nova lei votada em Abril no Parlamento acaba com este requisito e alarga a permissão aos menores entre os 16 e os 18 anos, mediante autorização dos pais — ou os seus responsáveis legais — e proíbe as cirurgias correctoras a bebés e crianças intersexo. Marcelo pede que o Parlamento considere a necessidade de relatório pelo menos para os menores — para ajudar a “consolidar” a escolha do jovem.
Em 2011, quando entrou em vigor a actual lei — a primeira em Portugal que permitiu aos “trans” a mudança de nome sem que tivessem feito antes o processo cirúrgico de mudança de sexo e que teve como principal impulsionador o activista Miguel Vale de Almeida, independente eleito pelo PS —, a comunidade suspirou de alívio depois de muitos anos a bater-se em longos processos judiciais para conseguir essa alteração no Registo Civil (e alguns acabavam rejeitados). Mas a realidade, entretanto, mudou: o manual de diagnóstico das doenças mentais da Associação Americana de Psiquiatria, uma referência mundial, deixou de incluir o transtorno de identidade de género; a Organização Mundial de Saúde, que está a rever o compêndio de doenças, vai mudar o assunto da área da saúde mental para a sexual.
A eliminação da exigência do relatório médico é, por isso, hoje o ponto de honra para a comunidade “trans”. Porque “finalmente a lei reconhece que as pessoas “trans” sabem quem são e acaba com a infantilização histórica a que têm sido sujeitas. Como se precisássemos de médicos para confirmarmos a nossa identidade…”, aponta Alice. Daí que existam casos de “trans” que dispunham de relatório, mas que preferiram deixar a mudança de nome para quando a lei lho permitisse sem condições.
O principal foco da vida de Alice Cunha nos últimos três anos foi o trabalho que levou a esta lei — acções de rua, manifestações, festivais e marchas LGBTI, reuniões com agentes políticos. O diploma partiu de três propostas do Governo, do PAN e do Bloco, que tinham o assunto nos programas eleitorais —, mas a dos bloquistas entrou no Parlamento há dois anos. Houve pedidos de pareceres até a outros parlamentos, audições de especialistas, de jovens “trans”, de associações. O coração andou nas mãos até à aprovação, à tangente, por 109 votos a favor e 106 contra. E caiu ao chão com o veto, uma “chantagem ideológica” do Presidente, aponta Alice, cujo activismo a leva a dormir tanto quanto Marcelo, umas quatro horas por noite.
Uma lei “perigosa” e “potencialmente homicida”
Marcelo sublinhou que não estava a olhar a lei pela “sua posição pessoal, que é idêntica à do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV)”. Esta entidade deu parecer negativo aos três diplomas que deram origem à nova lei. O conselheiro Jorge Costa Santos, que no Parlamento defendeu a posição do CNECV, diz-se preocupado com o facto de se “iludirem” as questões da despatologização quando há uma lei “equilibrada e adequada” em vigor. “Sempre lutei contra o regime anterior, que era trágico para os ‘trans’; em que havia incongruência entre a pessoa que se era e os documentos que se tinham.”
Mas critica a lei aprovada e até lamenta que o veto do Presidente tenha ficado aquém do defendido pelo Conselho. Além dos casos de desconformidade com o sexo com que se nasceu, a disforia de género, existem outros, embora “raros”, “com perturbações mentais e manifestações delirantes de transformação corporal que pode incluir o desejo de mudarem de sexo”, daí a necessidade de uma opinião médica. Além disso, apesar de se recusar a génese patológica, pretende-se que todos os tratamentos sejam feitos no SNS como se de uma doença se tratasse. A que se soma a redução da questão da cidadania, que é pública, a um mero acto privado no Registo Civil, acrescenta Jorge Costa Santos.
O padre Gonçalo Portocarrero de Almada, colunista, primeiro no PÚBLICO, agora no Observador, diz ao P2 que esta lei é “perigosa” e “potencialmente homicida” porque, vinca, os estudos mostram que a taxa de suicídios de adultos que recorrem a tratamentos com hormonas do sexo oposto é “20 vezes superior ao normal”. À “mentira” em que vive quem quer mudar a sua aparência anatómica, a Igreja não deve oferecer complacência, mas ajudar a “aceitar a sua real condição e natureza” com acompanhamento espiritual personalizado. Admitindo não ter qualquer experiência concreta com jovens “trans”, Portocarrero de Almada afirma que há uma “intromissão excessiva de leigos na matéria em vez de especialistas, como médicos e psicólogos”, notória na ideia de alargar a lei aos menores de 16 anos — quando o amadurecimento do cérebro só está completo aos 25 anos, como especifica Jorge Costa Santos.
A solução ideal para as pessoas “trans” é os deputados confirmarem o diploma a 12 de Julho, mas a socialista Isabel Moreira e a bloquista Sandra Cunha analisam alternativas, como a exigência de testemunhas em vez do relatório clínico em que Marcelo insiste.
No fundo, o cenário não é muito diferente do que existiu em 2011, com a primeira lei. Esse articulado foi então devolvido por Cavaco Silva, com muito mais reservas do que as de Marcelo, e que a esquerda (com sete deputados do PSD) reconfirmou sem alterações. Agora, para conseguir a maioria absoluta, é preciso que o PCP mude da abstenção para o sim — algo difícil, mas não impossível. A deputada Rita Rato recorda que o PCP defende a despatologização, mas mantém dúvidas sobre as “condições de verificação da identidade” de uma pessoa que mude de nome e género, já que a lei exige que todas as referências aos anteriores devem ser apagadas. Rita Rato garante que está tudo em aberto nesta discussão (porque há outra mais complicada, já dentro de dias: a eutanásia). M.L.