“O país esteve-se nas tintas para nós”
No dia da festa, houve festa. Os adeptos do Aves encheram a mata do Jamor e lamentaram que ninguém tenha querido saber deles na semana passada.
Ao meio-dia, o casal Correia é a única mancha vermelha que se encontra perto da Praça da Maratona, por onde se acede ao Estádio Nacional. À sombra dos pinheiros do Jamor, sentados em cima da geleira, Alberto e Albertina vestem as cores do Clube Desportivo das Aves e analisam a viagem até aqui. A de carro, que é longa desde Santo Tirso, mas também a da Taça, um sonho quase impensável até há meia dúzia de meses.
“Depois do Rio Ave, acreditei”, diz Alberto Correia. Isso foi nos quartos-de-final, quando o Aves empatou a três com a equipa de Vila do Conde na segunda mão, após derrota por 1-0 na primeira, conseguiu arrastar a eliminatória para prolongamento e matou o assunto nos penáltis. Um jogo de loucos. Alberto estava lá, como sempre. “Eu vejo todos os jogos em casa, às vezes falho fora”. É claro que, desta vez, não lhe passou pela cabeça não vir. Mesmo que a esperança por um bom resultado não seja muito grande. “A diferença entre as duas equipas é substancial. É um jogo, a sorte pode bafejar-nos, mas não vimos com a loucura de ganhar.”
Acontecendo isso, Alberto e Albertina (são eles os primeiros a rir-se com esta conjugação de nomes) levam do Jamor uma prenda antecipada do seu 40º aniversário de casamento, que esta segunda-feira se assinala. Como “até o padre veio”, podem até adiar o regresso à Vila das Aves e festejar a data por Lisboa.
Sobretudo se alguém ouvir a ideia de Paulo Freitas, outro adepto do Aves comedido nos prognósticos. “Nós não queríamos era descer de divisão. Não descemos, está ganho. Se ganharmos o caneco, feriado municipal!”, grita. Atrás do estádio, longe da entrada principal, concentram-se centenas de avenses em redor de bifanas, frangos assados, quiches, tartes doces, cervejas e sumos – uma marmita tradicional para dia de Taça. É a primeira vez que os apoiantes deste clube de 88 anos, sediado numa freguesia com 8.500 almas, fazem a festa no Jamor.
A conversa com a família Freitas segue por aí. “Nunca mais acontece isto”, diz Paulo, reconhecendo o momento histórico. Mas as agressões aos jogadores do Sporting em Alcochete e todo o drama que se seguiu ofuscaram o feito. “Merecíamos um outro destaque, que não tivemos. Acabaram por dar importância àquilo que não tinha nenhuma”, considera ainda Paulo. O primo Gabriel é mais duro. “O que eu senti esta semana é que nos amesquinharam. Se aqueles onze gajos que vão entrar em campo sentirem isso, ganhamos a taça.”
Gabriel Freitas destaca a relevância da vontade colectiva para pôr coisas a mexer, no futebol e não só. No ano passado, relata, o Aves criou uma equipa sénior de voleibol feminino. “Neste momento há formação desde os infantis até aos juniores. Vamos aos treinos da formação e estão centenas de pessoas.” Mas a “colectividade” nota-se também para lá do desporto, nos eventos culturais, na vida do dia-a-dia. Diz Gabriel: “Esperava que fossem ver quem éramos, ver que a Vila das Aves é uma terra de gente que sofreu de uma forma absurda durante a crise do sector têxtil, com uma emigração em massa. Gostávamos de ter dito isto ao país, mas o país esteve-se nas tintas para nós.” Por país, leia-se também (sobretudo?) a comunicação social.
“O clube merecia, a terra merecia”, concorda um amigo ali perto. “Eu tenho uma filha com 19 anos e, se lhe falo do Porto ou do Benfica, ela não quer saber. É uma cultura que se está a implementar nas Aves, este amor ao clube.”
Não muito longe, várias camisolas verdes e brancas destacam-se no meio do mar vermelho. Um grupo de sportinguistas veio montar estaminé aqui e está em amena confraternização com os colegas do Aves. “Isto é que é a festa da Taça! Às vezes esquecemo-nos de que há muita coisa bonita no meio disto tudo”, diz Nuno, o primeiro adepto do clube de Alvalade que se vê por ali.
João Guedes, o mentor deste convívio, veio de véspera guardar lugar. “Viemos para cá às quatro da tarde marcar o espaço todo, eu saí daqui às duas e meia da manhã.” Diz que aqui se sente “mais protegido” de discussões infrutíferas sobre o que se passou durante a semana e que os adeptos do Aves os acolheram de braços abertos. “O pessoal vem aqui todo confraternizar”, confirma Paulo Gomes, que veio da Damaia com a família toda para apoiar o irmão Vitinha, treinador-adjunto da equipa tirsense. Copo de medronho na mão, ergue-o ao céu como quem brinda a isso. A festa está feita.