Toda a misoginia que pode haver num amor absoluto

Ao primeiro romance, uma ficção negra sobre a ambiguidade do amor, a violência e o medo da perda, Gabriel Tallent recebeu as atenções do mundo literário. O Meu Amor Absoluto é uma impiedosa história de sobrevivência.

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Como Turtle, a protagonista deste romance, Gabriel Tallent cresceu em Mendocino, uma localidade californiana de menos de mil habitantes que teve a sua fama hippie ALEX ADAMS PHOTOGRAPHY

No princípio de tudo não havia Turtle, a rapariga atormentada e meio selvagem. Na cabeça do escritor, só existia a paisagem que a moldou e onde ela se refugiava nos momentos de maior sofrimento e raiva. É uma espécie de promontório sobre o Pacífico, chama-se Mendocino.

Ao contrário de Turtle, Mendocino é real. Fica na Califórnia, e é um aglomerado de menos de mil habitantes conhecido pela comunidade hippie que lá morava nas décadas de 60 e 70 e que depois ficou, quando a localidade se transformou numa colónia de turistas e “transplantados” de Silicon Valley. Foi lá, numa família herdeira do espírito hippie, com a mãe e a mulher dela, que Gabriel Tallent, 30 anos, morou desde muito pequeno: “Não me lembro bem da data; não sou muito bom na minha biografia”, diz ao Ípsilon o autor de O Meu Amor Absoluto, agora editado em Portugal pela Relógio D’Água. Um dos mais elogiados romances de estreia de 2017, é um livro negro, centrado numa adolescente de 14 anos e nos sentimentos extremados – amor e ódio – que sente pelo pai, um quase monstro. Quase, uma vez que aqui nada é absoluto, a não ser o instinto paranóico do pai em relação à filha.    

“A estrada vem da vila, onde é possível ver prédios baixos e brancos com telhados de madeira em bico e tábuas de revestimento pirosas, depósitos de água que o tempo foi queimando num negro-castanho. Diante da vila, uma extensão de pradaria costeira que se esvai em sebes de arbustos, ciprestes corcundas e nodosos, o mar, leixões áridos e atapetados com numerosas congregações de aves.” Mendocino nunca aparece neste livro desligada de Turtle. É o lugar aos olhos dela, da rapariga que vive com o pai numa casa velha “aninhada na sua colina”, com uma janela a dar para a baía, um lugar que assim se torna o segundo protagonista do livro que Gabriel Tallent começou para ser uma coisa bem diferente. “Eu queria escrever um livro sobre um lugar”, conta o escritor, depois de dizer que se inspirou para esse projecto no poema The Seasons, do escocês James Thomson (c.1700-1748), um texto sobre a paisagem, que entre outras influenciou a pintura de Turner. Turtle apareceu nesse contexto, mas, a dado momento, o romance de Tallent passou a ser o livro de Turtle e não o livro de Mendocino e da paisagem envolvente. “Já tinha anos de escrita quando senti que a coisa acertada, a coisa mais importante a fazer, seria dedicar o livro inteiramente a ela, e por isso Turtle talvez seja a génese do romance tal como ele é agora – mas antes disso trabalhei muito.”

No total, foram oito anos até chegar à voz de Julia Alveston, a filha de Martin Alveston, por todos conhecida como Turtle. A rapariga do amor e do ódio inseguros, com péssima impressão de si mesma, que se sente “eivada de imperfeições”; introspectiva, treinada para não falhar um tiro, criada para a sobrevivência mais precária por um pai fanático que acredita que o fim do planeta está perto. A que se alimenta de ovos crus ao pequeno-almoço – retira-os da caixa, parte-os e deixa o seu conteúdo sair directamente da casca para a boca. A que é incapaz de socializar com os colegas da escola, solitária, misógina, convicta da sua falta de feminilidade, certa de que irá falhar em qualquer tarefa que não seja a de usar uma arma, e parte de um jogo perigoso, sujo, de que começou por ser vítima mas do qual se sente cúmplice.

Turtle é tão selvagem quanto a paisagem que a envolve. Ambígua, ora harmoniosa, ora cheia de arestas, a viver numa “dúvida paralisante”, escrava de uma intimidade inominável. “Todas as falhas de Martin são um segredo entre os dois”, lê-se. Ela e ele. Até que ela ganha consciência da sua condição no momento em que conhece as famílias de Brett e de Jacob, os dois rapazes que socorre na floresta. A normalidade deles devolve-lhe o retrato da sua própria bizarria.     

“Mudar o ângulo do livro foi um pouco assustador”, salienta Gabriel Tallent, reconhecendo que este primeiro romance foi também a sua grande lição de escrita. “Quando percebi que este seria o livro de Turtle, senti um grande entusiasmo em escrever sobre ela de maneira persuasiva, vívida e séria, para honrar o que eu sentia que ela era. Chegar ao fim foi uma espécie de recompensa.”

Fê-lo na tentativa de construir uma interioridade que desse a dimensão não apenas do sofrimento e da luta contra um trauma irremediável, mas também da ambiguidade que a caracteriza, por si só potenciadora desse sofrimento. “Quis que ela soasse real e dei muita atenção aos seus sentimentos. Quando se está a escrever, está-se a tentar captar qualquer coisa que está além da explicação; algo muito subtil, demasiado irredutível para que possa ser explicado, mas que se acredita ser verdadeiro acerca daquela pessoa. Tentei fazê-lo através de uma observação complexa da página. E há uma sensação que aparece quando se sente que se está a fazer isso bem, quando se está a escrever a partir de um bom instinto – como se tudo aquilo fosse verdadeiro. E fi-lo fugindo a estereótipos, tentando mover-me na sua subtileza, nos matizes da percepção de uma pessoa. Turtle é uma pessoa.” 

Nesse processo, Whitman e Toni Morrison foram as suas companhias. "Li muito Whitman e pensei muito em Beloved, de Toni Morrison. Acho que ela transforma de forma maravilhosa o significado em estilo. Também tive a ambição de criar uma coisa envolvente mas ao mesmo tempo distante, e daí a terceira pessoa a narrar, vergada ao modo como Turtle vê o mundo”.

Uma imagem distorcida

Conhecemos Turtle em interacção com Martin, o homem que lhe chama de “meu amor absoluto", e é nesse absoluto que Gabriel Tallent sustenta o romance. “Ela cresce atolada em emoções complicadas em relação ao pai. Ama-o e odeia-o. Para mim esta é uma história sobre Turtle a tentar encontrar força para resistir quando resistir não parece possível; na página, Martin tem de ser essa figura do impossível. Tenho de trazer o leitor para aqui, para que, como eu, ele possa entender por que é que ela gosta. As pessoas reais sentem essa ambivalência, esse conflito: amam pessoas que as odeiam, que as magoam. Tenho de fazer com que o leitor sinta essa vulnerabilidade, ou então falho, e o dilema de Turtle não fica claro.”

Martin é o monstro que às vezes não é. O violador e o que protege. Pode haver alguma empatia? “Tentei fazer Martin tão difícil e lunático e tóxico que a ambivalência de Turtle, o amor de Turtle por ele e a dúvida que ao mesmo tempo sente, fizessem sentido a um nível visceral. Martin quer controlar a filha porque não tem a força [necessária] para tolerar que a pode perder. É uma condição humana fundamental, somos vulneráveis à perda das pessoas ou das coisas que amamos. Martin tenta manter para sempre uma coisa que não pode ser mantida.”

O título do romance é essa frase que vai repetindo para manter Turtle por perto. A filha a quem também chama “croquete”, que não sabe como crescer mulher e que não suporta as outras mulheres porque Martin a ensinou a não as suportar para não ficar, como elas, vulnerável ao amor dos outros. Ele criou nela um ideal. “A idealização é perigosa”, diz Tallent. “A idealização das mulheres que amamos é outra forma de misoginia; é o sinal de uma relação perturbada. É muito frequente dizer-se que alguém é misógino quando odeia mulheres, mas e o que dizer de alguém que ama incondicionalmente? Penso que esse exacerbar, essa idealização é uma ameaça, uma perturbação implícita em relação às pessoas que amamos.” 

Turtle aparece aqui como uma versão absoluta dela e não como a versão real; não a rapariga ela mesma, mas uma imagem distorcida pelo pai num romance que toca aspectos muito actuais, ou, como Tallent prefere dizer, intemporais: a violência sobre as mulheres, o feminismo, as alterações climáticas, o capitalismo. Mas nada disso se sobrepõe à trama. Nada se sobrepõe a força da protagonista que Tallent criou e que Stephen King, por exemplo, comparou a algumas das que integram o cânone das grandes personagens feministas do romance americano. Como as de Mataram a Cotovia, de Harper Lee, ou Catch-22, de Joseph Heller.

Gabriel Tallent agradece a generosidade com que de desconhecido no mundo literário passou a ser sinónimo de grande esperança da ficção americana. Bastou-lhe um romance que o projectou a nível nacional e o deu a conhecer em várias línguas além do inglês. Como Turtle, é o rapaz que cresceu em Mendocino, onde há uma praia que se chama Portuguese Beach – “não sei de onde vem o nome”, ri –, que estudou literatura e vive em Salt Lake City desde 2012. O ano em que começou a ler Proust e Dostoiévski, autores que juntou aos seus favoritos: Herman Melville, Platão, Ésquilo, Anne Carson, Louise Glück.

Ao contrário de Turtle, porém, ele não ia para a floresta procurar refúgio. Como os rapazes Brett e Jacob, procurava a aventura. Por isso, este não é um romance autobiográfico. E quanto a ser um romance político? “Cresci num ambiente feminista e é muito difícil para mim dizer se este é ou não um romance político. O que é a política? É o estudo do que é possível, o estudo de soluções para o governo do Estado, e essa não é uma coisa em que seja bom. Aqui na América sou um cidadão que vota, um cidadão comprometido com a política, mas enquanto escritor a política não é o meu primeiro compromisso. Acredito, no entanto, que há verdades morais sobre o mundo e que magoar pessoas é errado; isso pode justapor-se à política, mas não é política. Não sou um escritor político, não escrevo à procura de soluções políticas; tento iluminar experiências humanas. Se acredito que a violência sobre mulheres é um problema da nossa sociedade? Acredito. Sou politicamente feminista? Sou.”

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