Queremos mesmo falar a sério sobre o interior?
O interior só é interior porque Portugal é um corpo social, económico e político disforme e disfuncional.
O despacho do Governo que obriga as universidades e politécnicos de Lisboa e do Porto a cortarem 1100 vagas nos cursos do próximo ano lectivo para aumentar o número de alunos do ensino superior no interior não passa de uma medida banal na tentativa de reequilibrar as terríveis desigualdades territoriais do país – uma brincadeira com o projecto de coesão territorial que a Irlanda lançou para 2040. Mas é ainda assim uma das mais importantes, emblemáticas e encorajadoras medidas que um Governo tomou em décadas para corrigir as gritantes assimetrias no desenvolvimento do país. Na semana que o Movimento Pelo Interior lança as suas propostas para se criar uma primeira geração de políticas coerente e consistente em favor do Portugal esquecido, a medida é um bálsamo. Não vai salvar o interior, ou, como agora se diz, os territórios de baixa densidade. Mas representa um gesto de vontade. Um passo. Uma tentativa de corrigir um mal. Em Portugal, as duas principais cidades concentram 54% da população universitária do país, enquanto essa proporção se limita a 27% na Espanha, 23% na França, 18% na Alemanha e 8% na Holanda.
Num país com a geografia de Portugal o interior só é interior porque Portugal é um corpo social, económico e político disforme e disfuncional. Com uma distância entre o mar e a fronteira a rondar os 200 quilómetros, com tantas auto-estradas e itinerários complementares a vencê-la, só vivemos num país assim tão dual, tão desequilibrado e tão desigual porque em 40 anos de democracia o poder central jamais mudou a sua visão colonial herdada do tempo dos Descobrimentos (sim, o uso da palavra aqui é assumido e intencional no meio da discussão tonta que por aí se propaga a propósito de um museu). Portugal é Lisboa, é o litoral ou são as áreas mais dinâmicas da economia privada polarizadas pelo Porto e o resto não passa de paisagem onde se pagam poucos impostos, se elegem poucos deputados, onde há cabrinhas e ovelhas e, vá lá, uns tantos indígenas pitorescos que ficam bem no folclore ou a fazer bons queijos e vinhos.
Há anos (décadas) que dirigentes políticos, geógrafos, economistas, dezenas de autarcas, de empresários, de agentes da cultura protestam contra o ciclo vicioso do subdesenvolvimento que condena três quartos do território nacional. Há anos que se apregoa a discriminação positiva do interior em matéria de fundos estruturais ou em sede de políticas fiscais. Depois das promessas, porém, sabemos o que aconteceu: redução dos serviços públicos básicos que hoje condenam os habitantes das zonas rurais a esperar o dobro do tempo para serem socorridos numa urgência médica; afastamento do Estado e dos serviços que tutela ou tutelava, sejam os correios ou a Caixa; concentração do investimento com os fundos estruturais nas zonas mais desenvolvidas, incluindo em Lisboa que, pelo seu índice de riqueza está fora do Objectivo 1 que delimita as áreas da coesão.
Era impossível e indesejável conservar o velho mundo rural português da courela, da agricultura de subsistência, da pobreza e do atavismo. Mas era possível evitar que o êxodo assumisse as dimensões dantescas que assumiu - entre 1960 e 2016 a população residente no litoral aumentou em 52%, enquanto no interior diminuiu em 37,5%, constata o Movimento pelo Interior. Era possível replicar o modelo de desenvolvimento conseguido pelos espanhóis, onde as vilas e, principalmente, as cidades médias foram capazes de reter a migração nas zonas de origem. O interior falhou em descobrir uma dinâmica própria porque o Estado falhou em ir de encontro às suas necessidades. Falhou tanto que num ano dramático como o ano passado puderam arder descontroladamente 540 mil hectares da nossa floresta e, pior ainda, cidadãos portugueses morreram no centro das suas aldeias sem que houvesse qualquer capacidade de os proteger. Falhou o Estado, falharam as autarquias, falhou a cidadania. A derrota do interior é uma derrota colectiva.
Forçar a migração das vagas nas universidades é neste quadro um sinal de empenho. Mas é apenas um começo, tímido. Com a agricultura e a agro-indústria a mostrarem finalmente sintomas de adaptação ao mercado europeu, deixou de fazer tanto sentido explicar o abandono do interior com a pobreza endémica de recursos. As universidades começam a assumir as suas responsabilidades com os territórios e as pessoas da comunidade em que se inserem – a UTAD é disso um bom testemunho. Há cada vez mais autarcas a perceber que podem fazer a diferença em favor dos seus cidadãos. Mas esta rede local de potencialidades só conseguirá dar a volta ao “país sonolento”, como lhe chamava João Ferrão, se houver um claro empenho colectivo em criar oportunidades de mudança. Envelhecido, empobrecido e abandonado, o interior precisa do país. Ou, por outras palavras, precisa de políticas de coesão reais e projectadas num tempo longo.
Para se acreditar que medidas como a das vagas não passa de mais um fogacho é fundamental que o Estado Central deixe de obedecer ao modelo medieval, centralista e macrocéfalo onde tudo tem de estar na capital. As assimetrias regionais e a desigualdade de oportunidades entre o litoral e o interior implicam não só mais actos de vontade política como uma urgente e completa reforma deste estado hipercentralizado, obeso, labiríntico, volúvel à corrupção e incapaz de olhar para Portugal como um todo feito a partir de regiões diferentes na terra, nas cidades, nos hábitos económicos, na disponibilidade de recursos endógenos. Acreditar que, no século XXI, um país tão multifacetado, uma sociedade cada vez mais sofisticada e uma economia cada vez mais cosmopolita podem ser bem governadas a partir de um único centro de poder é um delírio fantasista. Nenhum país europeu funciona assim, mesmo os mais pequenos em área.
Medidas como a anunciada pelo Governo ou planos como os que o Movimento pelo Interior vão lançar esta semana são excelentes pontos de partida para se discutir e ensaiar soluções para se travar modelo de desenvolvimento terceiro-mundista que condenou dois terços de Portugal ao abandono e à anomia. Mas, sejamos realistas: o problema do interior deve-se em primeiro lugar à inexistência de instâncias de governo regional capazes de as pensar e projectar no futuro. Querer que Vinhais seja Oeiras, ou Beja Braga, é uma utopia. Mas desejar um país onde subsista um modelo de coesão territorial como o que se encontra na Galiza ou na Andaluzia está bem ao nosso alcance. Está, por isso, na hora de aproveitar contributos pertinentes e generosos da sociedade civil e, sem clubismos nem demagogias, acreditar que Portugal continuará em perda se não deixar de ser o mais centralizado país da Europa – ao lado da Grécia, quem diria?