A propósito da transferência de competências para os municípios
A transferência de competências entre níveis de decisão obriga a três tarefas de natureza intelectual.
Segundo a teoria económica do Federalismo Financeiro, o ponto de partida da análise das relações financeiras entre níveis de governo reside na afirmação o financiamento segue a função, ou seja, deve ser a despesa a pré-determinar a receita. Isto justificaria que, por exemplo, à medida que novas atribuições e competências fossem transferidas do Estado central para os governos locais, estes fossem obtendo novas receitas ou vissem alargadas as já existentes. Disso mesmo fazia eco a anterior Lei das Finanças Locais (Lei n.º 2/2007) que previa que a transferência de competências (num processo iniciado em 1999) fosse acompanhada dos recursos financeiros adequados. Apontava-se designadamente para uma transferência programada e plurianual desses recursos. Essa lógica de conexão ficou todavia, na prática, aquém do que era suposto fazer-se. Ao invés, verificou-se uma transferência de verbas casuística, nos orçamentos anuais do Estado, determinada em grande medida pelas possibilidades financeiras deste último, em cada momento verificadas.
O tema da descentralização entrou agora novamente na agenda política, como o revela o acordo recentemente celebrado entre o Governo e o PSD. Com efeito, agora no quadro do atual regime financeiro das autarquias locais (Lei n.º 73/2013), discute-se o reforço das competências dos governos locais, em diversas matérias, mesmo para lá da área da Educação, onde os maiores passos foram dados até aqui.
A meu ver, a transferência de competências entre níveis de decisão obriga a três tarefas de natureza intelectual. A primeira, que as análises do Federalismo Financeiro têm refletido desde meados do século XX, consiste em determinar se e quando se justifica avançar para a descentralização de competências (lato sensu). Defende-se que a descentralização faz mais sentido a nível da chamada ‘alocação de recursos’, do que em relação a outras funções, como a ‘redistribuição’ e a ‘estabilização macroeconómica’, nas quais o Estado central deve manter a primazia. Quanto àquela, os critérios normativos definidos por economistas como Musgrave e Oates comungam da ideia da espacialização do benefício. Será assim o alcance do benefício a ditar se o bem em causa deve ser provido pelo nível central ou por outros níveis de decisão (regional ou local). O critério é apelativo e de fácil aplicação: v.g. o alcance do benefício da iluminação pública cinge-se ao território local, pelo que deve ser o governo local a assegurar a provisão. Outros critérios, todavia, podem obrigar à retração deste efeito descentralizador e justificar, pelo contrário, a recentralização de competências: por exemplo, a verificação de efeitos de contágio para fora da circunscrição ou a existência de economias de escala (que justificam a provisão a uma escala maior).
A segunda tarefa intelectual parte do reconhecimento de que a transferência de competências numa determinada área funcional não pode ser vista em bloco, como pacote único e indiferenciado. Assim, por exemplo, o Estado central, quando transfere competências na área da Educação, não transfere tudo a respeito da Educação. Para, nomeadamente, se evitar sobreposição de funções com outros níveis de governo, a área funcional (domínio de atribuições) deve ser desdobrada, em sede de concretização legal ou contratual, em vários elementos. Mantendo o exemplo da Educação, haverá que: i) Na área funcional em causa, identificar, se for caso disso, os níveis de atuação do governo local: v.g. ensino básico (por contraposição ao ensino secundário e superior); ii) No mesmo domínio de atribuições, identificar concretamente as atribuições que serão cometidas aos governos locais – v.g. pessoal não docente, infraestruturas escolares – e que, note-se, são atribuições da pessoa jurídica em si (‘município’, ‘freguesia’ ou outra); iii) A respeito de cada atribuição, concretizar os poderes funcionais associados: v.g. poderes de regulação, financiamento, construção, gestão; iv) Finalmente, identificar as competências (stricto sensu) dos órgãos da pessoa coletiva em questão: poderes deliberativos, no caso das assembleias, poderes eminentemente executivos no caso das câmaras e presidentes locais.
A terceira tarefa consiste enfim em determinar os tais elos de ligação entre função e financiamento, capazes, em qualquer caso, de evitar soluções casuísticas de financiamento, e que podem envolver discricionariedade indesejada. Existem dois caminhos possíveis, um já previsto e seguido, o outro a estudar: i) O reforço do Fundo Social Municipal (uma subvenção específica do Estado) para acomodar financeiramente as novas competências nas áreas sociais cobertas (saúde, educação e ação social) – esta solução, de resto, já está contemplada na Lei n.º 73/2013; ii) A redefinição dos critérios perequativos no âmbito do Fundo de Equilíbrio Financeiro (em particular, no Fundo Geral Municipal) que permitam, se e à medida que os governos locais assumam novas competências, fazer refletir automaticamente o custo da (nova) despesa no valor do bolo a distribuir por cada município – hipótese a equacionar. Finalmente, neste plano, haverá que repensar o universo de receitas fiscais próprias que sirva a correção deste (novo) desequilíbrio financeiro vertical, seja no caso dos impostos (e.g. novos impostos locais e novos mecanismos de partilha de receita fiscal entre níveis de governo), seja no caso das taxas. Aqui, do que se trata desde logo é de refletir sobre a eventual erosão do caráter sinalagmático das taxas (tributos com contrapartida em serviços específicos) neste contexto de maior abrangência funcional – uma reflexão que, aliás, a recente jurisprudência constitucional sobre as novas taxas de proteção civil permite suscitar.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico