IPSS quer abrir fábrica dentro de prisão
Instituição particular de solidariedade social Reclusa, que gere negócio social de malas de luxo, tem projecto para Estabelecimento Prisional de Tires
Há uma instituição particular de solidariedade social que quer recuperar parte de um pavilhão que existe dentro do perímetro do Estabelecimento Prisional de Tires, em Cascais, e aí instalar uma unidade de produção de malas e outros acessórios de luxo. Chama-se Reclusa e o objectivo é ocupar, formar, reinserir.
O anúncio é feito por Madalena Mantas, jurista, voluntária responsável pela comunicação e pelo marketing: “Será uma coisa pioneira. Desde que entram na prisão, as mulheres vão poder estar ligadas a um projecto que as vai poder ajudar quando saírem.”
Tudo começou com as visitas de Inês Melo ao Estabelecimento Prisional de Tires, como voluntária da "Dar a Mão". Encontrava ali tantas mulheres que precisavam de se ocupar, de ganhar algum dinheiro, de encontrar um sentido para a vida, de obter uma segunda oportunidade.
Inês Melo e outra voluntária, Mafalda Lima Raposo, queriam fazer mais do que visitar reclusas. Desafiaram nove pessoas amigas a criar uma associação destinada a “reconstruir as vidas da população reclusa e ex-reclusa, através do apoio à sua reinserção e integração social e profissional”. Chamaram-lhe Reklusa.
Começaram por envolver reclusas na manufactura de sacos de pano, usando estofos de automóveis, tecidos plastificados, telas sintéticas e outros materiais. Vendiam-nos dentro dos seus círculos de amigos por um preço que oscilava entre 20 e 50 euros por peça e reinvestiam o lucro, por inteiro, no projecto.
Naquele tempo, o foco estava todo na solidariedade social. Madalena Mantas, que faz parte do núcleo fundador, lembra-se de organizar vendas em sua casa. “Era um produto engraçado mas sem grande qualidade”, recorda. “As amigas compravam um para ajudar, mas não queriam comprar dois ou três.”
A ameaça
Extinto o entusiasmo inicial, pairava a ameaça de definhar. Houve uma empresa que fez um pequeno estudo de mercado e que avisou: “Ou vocês criam uma marca forte, que seja competitiva no mercado, com um design, com uma linha, ou vão morrer.”
“No fundo, tínhamos de funcionar como um produto que está no mercado e que é apetecível”, resume Madalena Mantas. Teriam de fazer com que o público-alvo pensasse: “Quero uma mala da Reclusa porque é linda e tem uma história por trás”. E não: “A Reclusa é uma história linda com umas malinhas.”
O Centro Comercial das Amoreiras já lhes emprestava lojas provisoriamente vazias. A Câmara de Lisboa cedeu-lhes um espaço na Rua das Amoreiras. Recorrendo à plataforma de crowdfunding do Novo Banco, conseguiram angariar 2500 euros para as obras. Abriram as portas da loja/atelier em Novembro de 2013.
Era uma transformação total. Iam deixar de ser uma associação empenhada em apoiar reclusas e iam passar a “ser uma marca de moda que daria emprego e uma segunda oportunidade a mulheres”. Alteraram o nome de Reklusa para Reclusa. Adoptara um novo logótipo, que representa uma cela quadrada, mas “atravessada por um novo caminho, uma nova oportunidade”.
“Foi o caminho que a reclusa teve de fazer”, resume Madalena Mantas. “A Reclusa tinha de começar por algum lado. Não ia começar com uma designer, uma loja, um atelier. Tudo tem o seu tempo.”
A nova Reclusa foi relançada no final de 2016. Já em 2017, ganhou novo fôlego com a contratação da designer e artesã Filipa Brito e Abreu.
Filipa Brito e Abreu, de 46 anos, criara a sua própria marca de acessórios. Desenhava malas, fazia-as e vendia-as, através da internet, trabalhando no campo, dentro de uma autocaravana. “A minha inspiração vem com os materiais e a fazer”, explica ela. “Começo a fazer uma coisa e, de repente, estou a fazer outra. É complicado cumprir prazos, temas, mas é bom, é um desafio.”
O recomeço
A primeira colecção da Reclusa, a Primavera-Verão 2018, foi em Março apresentada no Museu da Electricidade. É um "quebrar de onda" que alude a mar e tenta ultrapassar o modo “condescendente” de encarar os produtos da economia social. Cada modelo dá origem a meia de exemplares que custam entre 70 e 235 euros.
Já estão a trabalhar na próxima colecção, a Outono/Inverno 2018. As malas de pano estão a chegar à prisão cortadas. As reclusas furam, marcam, cosem. As de pele vão para três artesãos de pele certificados, que são parceiros do projecto.
“Adoro trabalhar com elas”, afiança a designer, residente em Moura. “Sinto que é bom para elas, que elas gostam. Acho que sentem que estão a fazer uma coisa séria, não uma coisinha. É quase como uma luzinha. Uma mulher que vai sair agora andava sempre atrás de mim a dizer que queria vir trabalhar para aqui.”
O “aqui” de que fala é a loja-oficina. A fazer venda directa e trabalho administrativo está uma ex-reclusa, Liliana Rodrigues, de 38 anos. O plano é terem cada vez mais mulheres a passar por ali uns meses, a ganhar experiência, e a serem encaminhadas para parceiros, no mercado de trabalho regular.
Segundo Madalena Mantas, desde 2014, “começaram por trabalhar na loja/oficina fora do Estabelecimento Prisional de Tires e posteriormente foram encaminhados para o mercado de trabalho dez pessoas”. Dedicam-se, hoje, a "vendas, restauração, administrativo, trabalho doméstico". Ninguém reincidiu.
Produção total dentro da prisão
O próximo passo é produzir todos os artigos dentro da prisão. Isso permitirá oferecer trabalho a mais reclusas, ao mesmo tempo que lhes darão formação em corte, costura, marroquinaria, e, à saída, as apoiarão na inserção socioprofissional. A designer e os três artesãos estão prontos para as formar.
Como não têm verbas para reconverter a antiga lavandaria em fábrica, concorreram ao Prémio BPI Solidário 2018, aberto a instituições privadas sem fins lucrativos com projectos sociais inovadores. “Temos engenheiros e arquitectos que fizeram projectos, orçamentos”, detalha, com entusiasmo, Madalena Mantas.
Para já, a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais não se compromete. “Esta é uma pretensão da IPSS relativamente à qual aguardamos pedido formal e devidamente detalhado que estamos disponíveis para analisar, sendo, porém, ainda prematuro emitir um juízo final”, informa, por email.
Segundo afirma, naquela prisão "estão a trabalhar sete empresas externas dos ramos de actividade de componentes eléctricos, de ferragens, de embalagem de molas, de malas de diversos materiais, de acessórios de cabelo, de peças de caixilharia e de lençóis e panos de cozinha”. No seu conjunto, “dão trabalho a 158 reclusas”.
A Reclusa não se confunde com essas empresas. “Somos uma associação que promove a reinserção social”, enfatiza Madalena Mantas. Não importa apenas dar trabalho a reclusas e pagar-lhes por esse trabalho. Importa conhecê-las, ajudá-las a recomeçar cá fora, como aconteceu com Liliana Rodrigues.