Como a separação dos cromossomas pode ter muita beleza
Imagens obtidas por equipa portuguesa são a capa da revista Current Biology. Investigação explica por que razão há cromossomas mais propensos do que outros a alterações no seu número durante a divisão das células – o que derruba um dogma biológico com mais de um século.
A equipa do investigador português Helder Maiato descobriu um aspecto absolutamente básico sobre a separação dos cromossomas durante a divisão celular. Quando uma célula está a dividir-se, o que vai dar origem a duas células geneticamente iguais, os cromossomas (onde está compactada a informação genética) têm de se distribuir de forma igual. Mas por vezes há erros e o resultado é que as células resultantes da divisão ficam com mais ou menos cópias do que o normal de um dos pares de cromossomas, como ocorre nos cancros e nas trissomias (como a síndrome de Down). O que a equipa coordenada pelo biólogo celular Helder Maiato – do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S), no Porto – demonstrou agora, pela primeira vez, é que estas alterações no número de cromossomas não acontecem ao acaso, como se pensava até aqui. Há pois uma razão biológica que explica por que são mais frequentes nuns cromossomas do que noutros, o que é importante para compreender as doenças a um nível muito básico.
Na sua página no Facebook, Helder Maiato comentou que este trabalho é dos mais bonitos que já fez. Perguntamos-lhe porquê. “Pela sua simplicidade e elegância”, começou por responder. “Apesar de usarmos técnicas sofisticadíssimas, não foi por aí que este trabalho se tornou possível. Em vez de trabalharmos com células complexas – por exemplo, humanas, com 23 pares de cromossomas –, usámos células de um mamífero muito próximo de nós, com um genoma do mesmo tamanho e semelhanças genéticas. Este mamífero condensa em três pares de cromossomas a informação genética que nós temos em 23 pares. É o mamífero conhecido com o número mais baixo de cromossomas.”
Trata-se do muntjac-indiano, ou Muntiacus muntjak, o nome científico desta espécie de cervídeo originária do Sul e Sudeste da Ásia, também conhecida como o “veado que ladra” (os machos têm uns dentes caninos visíveis). Na realidade, as fêmeas possuem três pares de cromossomas (o cromossoma sexual feminino está fundido com os outros), enquanto os machos, além desses três pares, têm um pequeno cromossoma Y, que está sozinho.
O grupo português isolou células deste mamífero e depois seguiu o rasto dos seus cromossomas, graças a técnicas sofisticadas de microscopia de super-resolução (como a depleção de emissão estimulada, ou STED, e o microscópio confocal). “Tendo só três pares de cromossomas, conseguimos segui-los com grande rigor e saber para onde vai cada um”, explicou o investigador. “Isso é muito difícil de fazer em células humanas. Quando uma célula humana se está a dividir, não conseguimos identificar com precisão cada um dos cromossomas entre os 22 pares, mais os sexuais. As células humanas são horríveis para trabalhar, são uma confusão tremenda.”
Mas ao usar as células do muntjac-indiano, os investigadores conseguiram verificar, durante o processo de divisão celular, se todos os pares de cromossomas teriam a mesma probabilidade de sofrer ganhos ou perdas e se, assim sendo, esses erros eram aleatórios. “A conclusão é que não”, sublinha Helder Maiato.
O tamanho importa
O fenómeno de ganhar ou perder cromossomas chama-se aneuploidia. Embora a maioria das aneuploidias se concentre em determinados cromossomas, pensava-se que isso se devia ao facto de haver ganhos e perdas de cromossomas que são incompatíveis com a vida.
Na síndrome de Down, apesar de haver cópias a mais do cromossoma 21, essa situação é compatível com a vida. Não é impeditiva da sobrevivência nem das células nem do indivíduo. Neste caso, o erro deu-se durante a divisão dos gâmetas, as células sexuais. A criança gerada com um desses gâmetas herdou assim duas cópias (em vez de apenas uma) do cromossoma 21 de um dos pais e a outra cópia (como é normal) do outro progenitor.
“Mas se perdermos o cromossoma 1, que tem tanta informação genética importante, isso não é compatível com a vida. A viabilidade das células é impossível”, acrescenta Helder Maiato. Por isso, até agora partia-se do pressuposto de que, por exemplo, só nasciam pessoas com certas aneuploidias porque isso era ditado pela viabilidade, ou inviabilidade, das células. E que não significava que esses erros não acontecessem com a mesma frequência em todos os pares de cromossomas. “O que assumíamos, até hoje, é que todos os cromossomas tinham a mesma probabilidade de perdas ou ganhos.” Afinal, não é nada disto.
Através das células do muntjac-indiano, a equipa pôde então concluir que um dos pares de cromossomas deste mamífero tem mais do dobro de probabilidades de sofrer de aneuploidia. “Mostrámos que os cromossomas têm probabilidades diferentes de ganhos ou perdas, independentemente de como a célula lida com isso e de isso ser viável ou não. Há uma predisposição para determinados cromossomas terem ganhos ou perdas”, nota Helder Maiato.
E o que está por detrás da maior ou menor propensão para a ocorrência de alterações do número de cromossomas? A resposta remete para o tamanho de uma região dos cromossomas que está activa durante a divisão das células – o cinetócoro.
Se olharmos para os cromossomas, que têm a forma de um X, o cinetócoro encontra-se na região onde as duas linhas desta letra se cruzam, explica o investigador. “É essa região que faz com que os cromossomas se segreguem, que cada bracinho do X, cada perna do X siga para as células-filhas.” O cinetócoro é assim um pequeno interface entre os cromossomas e a maquinaria que os vai distribuir na divisão celular, maquinaria essa que é formada por uma espécie de cordas (microtúbulos) que puxam cada um dos pares de cromossomas para cada uma das células-filhas.
Mesmo usando microscópios poderosos, nas células humanas o cinetócoro parece igual em todos os cromossomas. “Mas, em células só com três pares de cromossomas [do muntjac-indiano], a diferença de tamanhos do cinetócoro é visível”, conta Helder Maiato. “Pelo facto de um par de cromossomas ter um cinetócoro muito grande, conseguimos perceber que esses cromossomas têm tendência para ganhos ou perdas com mais frequência.”
Nas imagens que aqui publicamos vemos precisamente uma célula do muntjac-indiano apanhada a dividir-se: podem observar-se os seus cromossomas gigantes e a região do cinetócoro (assinalada a rosa, numa das imagens, e a amarelo esverdeado noutra). As imagens obtidas pela equipa preenchem toda a capa da revista Current Biology, onde este trabalho, que tem como principais autoras Danica Drpic (natural de Montenegro) e Ana Almeida, ambas do i3S, foi agora publicado.
“Um cinetócoro grande facilita a orientação dos cromossomas durante a divisão das células, mas isso vem com um preço: permite ligações erradas que levam a erros na separação desses cromossomas”, acrescenta o investigador, citado num comunicado do i3S. “Cromossomas que apresentam cinetócoros mais extensos ligam mais microtúbulos e preparam-se mais rapidamente para a divisão, alinhando-se mais facilmente na zona de divisão. No entanto, também se ligam com mais frequência a microtúbulos que puxam em direcções opostas, levando a erros durante a separação.”
A queda de um dogma
Para Helder Maiato, este resultado de que um processo tão fundamental para a vida é influenciado por propriedades intrínsecas dos próprios cromossomas é “revolucionário”: “Muda a forma como pensávamos. Desde que sabemos que há cromossomas que achamos que a sua segregação acontece por acaso. Era um dos dogmas que tínhamos quase como certos. Mas não, a segregação dos cromossomas é influenciada por vários factores e um destes factores é o tamanho do cinetócoro, que vai determinar a quantas cordas se vai ligar para ser puxado. Deixa de ser algo que é ao acaso para ser determinado por alguma coisa. Podemos invocar uma razão.”
É o fim de um dogma que durava desde que o anatomista alemão Walther Flemming descreveu, em 1882, o processo de divisão das células que formam tecidos e órgãos (não dos gâmetas).
Estas conclusões podem já extrapolar-se para nós? Em parte, sim, porque já se obtiveram conclusões semelhantes em células humanas pela equipa de Sarah McClelland, do Instituto Barts para o Cancro, da Universidade Queen Mary de Londres. A equipa portuguesa e a britânica coordenaram entre si a publicação ao mesmo tempo dos trabalhos no repositório de acesso livre bioRxiv, e o grupo de Helder Maiato acaba agora de ver publicado o seu também numa revista científica. “Ambos os estudos mostram que há probabilidades diferentes de ganhar ou perder cromossomas.” Assim, ambos concluem que nada disso é ao acaso. Mas enquanto a investigação portuguesa revela já que as causas estão na existência de cinetócoros maiores e mais pequenos, no estudo inglês isso não é óbvio nem é adiantada uma explicação, embora as pistas apontem agora para a dimensão do cinetócoro.
Um dia, descobertas como esta podem vir a ser uma ajuda preciosa no combate ao cancro. Como as alterações no número de cromossomas (geralmente mais cópias) são transversais a vários tipos de cancro, a partir destes conhecimentos poderão vir a encontrar-se alvos selectivos nas células cancerosas, com poucos efeitos nas células normais.
E quando perguntamos a Helder Maiato se, para além da elegância declarada deste trabalho, o processo de divisão das células é em si mesmo bonito, a resposta vem pronta: “Sem sombra de dúvida. Para mim, é o processo biológico mais bonito de todos, por isso trabalho nele. É essencial para a vida. Os princípios básicos são, na verdade, extremamente simples. O barulho que existe à volta do processo é que torna difícil ver esta simplicidade e reconhecer as coisas essenciais, onde tudo assenta, e o que é acessório.”
Fiquemos a pensar em todas as células que, neste instante, estão a dividir-se no nosso corpo. Sem isso, morríamos.