A banheira cor-de-rosa e o segredo do sucesso de Mary Kay
Primeiro, foi vendedora de livros porta-a-porta. Mais tarde, de produtos de limpeza. Depois, a norte-americana Mary Kay decidiu criar o seu próprio negócio de vendas directas e ajudar outras mulheres a pensar pelas suas cabeças. Faria cem anos este sábado.
Quando, há 21 anos, Dolores Araújo saiu de Braga e chegou à Convenção Mary Kay no Texas viu no palco dezenas de mulheres que eram directoras nacionais da marca de beleza norte-americana. Mulheres que a inspiraram e que a levaram a pensar: “Eu quero ser como elas.” Quatro anos depois, a antiga cabeleireira era directora nacional e conduzia um Mercedes cor-de-rosa, a cor preferida de Mary Kay Ash, a fundadora da empresa de venda directa de cosméticos. Se fosse viva, a empresária que foi reconhecida como a “maior empreendedora dos EUA” teria feito este sábado cem anos. Morreu em 2001. A sua empresa, que entretanto se espalhou por meia centena de países, celebra o seu 55.º aniversário. Em Portugal fará 23 anos em Junho.
Mary Kay Ash nasceu Mary Kathlyn Wagner a 12 de Maio de 1918 em Hot Wells, Dallas, Texas. Casou cedo, aos 17 anos, e teve dois filhos. O marido foi combatente na Segunda Guerra e Mary foi confrontada com a necessidade de trabalhar para sustentar a família. Começou a vender livros porta-a-porta. Trabalhar ajudou-a a conquistar independência e provocou o divórcio, pouco depois de a guerra ter terminado e o marido regressado. Voltou a casar mais duas vezes e teve um terceiro filho.
Em 1939 começou a vender para a Stanley Home Products, uma empresa de produtos de limpeza, e dava festas para os vender – um método que ainda hoje as chamadas consultoras de beleza da marca usam. O seu sucesso de vendas foi tal que foi convidada para trabalhar pela World Gifts. Foi quando viu um homem a quem dera formação ser promovido, em vez dela, que Mary Kay se despediu, como forma de protesto.
Durante 25 anos, Mary Kay trabalhou em vendas directas e sentia-se insatisfeita, confessa no livro The Mary Kay Way, editado pela primeira vez em 1984, onde partilha os segredos do sucesso do seu negócio. “Eu tinha alcançado o sucesso, mas mesmo assim sentia que o trabalho que realizara e as minhas competências nunca tinham sido reconhecidas”, escreve. A vendedora sentiu na pele o machismo, diz. E continua, num discurso que continua actual: “Sabia que não tivera todas as oportunidades de satisfazer o meu potencial simplesmente por ser mulher, e tinha a certeza de que essa sensação não era fruto de mera autocomiseração, já que havia conhecido pessoalmente muitas mulheres que passaram por injustiças semelhantes.”
São estes sentimentos, assim como os erros empresariais que vai apontando ao longo do livro, que a fazem querer criar uma empresa que valorizasse as mulheres. “Queria ajudar outras mulheres para que não tivessem de sofrer o que eu sofri.”
No seu livro, que é um guia para as milhares de consultoras de beleza espalhadas pelo mundo (China e Rússia incluídas), Mary Kay conta que depois de escrever as suas notas tinha a certeza que queria criar uma empresa de venda directa, a sua área de experiência, mas que ainda não sabia de quê. “Queria um produto de alta qualidade, que trouxesse benefícios a outras mulheres e que elas se sentissem confortáveis vendendo-o.” E lembrou-se de uma cosmetologista que vendia produtos de beleza cujas fórmulas tinham sido criadas pelo pai. Quando a mulher morreu, Mary Kay comprou as fórmulas à família. “Numa sexta-feira, no dia 13 de Setembro de 1963, abri as portas da Mary Kay Cosmetics, uma loja de 50 metros quadrados em Dallas. O meu filho Richard, que tinha 21 anos, juntou-se a mim e nove mulheres cheias de entusiasmo tornaram-se as primeiras consultoras de beleza independentes da Mary Kay”, conta no livro que marca os primeiros 20 anos da empresa. Assim nascia a companhia que Mary Kay, então com 45 anos, queria que fosse familiar.
Na altura, a empreendedora investiu cinco mil dólares e no primeiro ano tinha vendido perto de um milhão de dólares de produtos. Actualmente, a empresa está em 49 países e “milhões de mulheres podem dizer que têm uma vida melhor”, defende Sandra Silva, a directora geral da Mary Kay Portugal. Em 2000, Mary Kay foi reconhecida como a mais fantástica mulheres de negócios do século XX pela Lifetime Television. O seu neto, Ryan Rogers, lembra que a avó recebeu o Hall of Fame Award, na categoria de vendas directas; recebeu o prémio de distinção para “os grandes cidadãos americanos" pela associação Horatio Alger. Já depois da sua morte, em 2004 foi reconhecida como "a maior empreendedora da história dos EUA", pela Universidade de Baylor.
Deus, a regra de ouro e o sucesso
Mary Kay começa o primeiro capítulo do seu livro com uma citação bíblica, Mateus, 7:12 – “Portanto, o que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles, porque isto é a Lei e os Profetas.” –, ou seja, “trate os outros como gostaria de ser tratado”. É esta a mensagem que a norte-americana adapta como a sua “regra de conduta para a liderança”. Na empresa, “cada decisão de liderança baseia-se na Regra de Ouro”, escreve.
“Este é um ambiente corporativo, mas com princípios humanos”, descreve Sandra Silva, explicando porque começou, há oito anos e meio a trabalhar na empresa. Antes ainda da entrevista de trabalho, a gestora leu o livro de Mary Kay. “Percebi que o trabalho que ia desenvolver teria impacto na sociedade e com princípios positivos”, justifica.
Em 1979, numa reportagem para o programa 60 Minutes, da CBS, questionada se usava Deus para vender cosméticos, Mary Kay respondeu: “Espero que seja Ele que me está a usar.” No mesmo programa, a empresária defende que a companhia foi “abençoada”. “Deus está a usar a nossa empresa como um veículo para ajudar as mulheres a tornarem-se nas criaturas maravilhosas que Ele criou.” Um ano antes, quando recebeu o prémio Horatio Alger dedicou-o às meninas e disse que quando Deus criou o homem disse: "Isto é muito bom, mas penso que posso fazer melhor e assim criou a mulher."
Em 1982, num outro programa televisivo, alguém na plateia pergunta à empresária se é feminista. “Estou no meio. Quero que as mulheres tenham o bolo e possam comê-lo.” Noutra intervenção, pela mesma altura, reforça: “Quero que as mulheres tenham a oportunidade de usar o seu cérebro e tornarem-se naquilo que quiserem.” Mary Kay não é feminista, mas quer que as mulheres se sintam femininas. Passados 36 anos, o discurso não mudou assim tanto: “O objectivo é que as mulheres se sintam empoderadas, que sonhem e possam alcançar mais.”
A mensagem passa pelo serviço – fazer o que gostaria que lhe fizessem – e pela atenção pessoal – fazer sentir que os outros são importantes. Mary Kay recorda o dia em que quis conhecer alguém que admirava e como essa pessoa a ignorou. Por essa razão, a norte-americana sempre deu os parabéns pessoalmente a cada consultora de beleza – a Mary Kay não tem vendedoras, mas consultoras independentes, freelancers, que compram os produtos e os vendem pessoalmente. No seu livro conta como gostava de receber as directoras de vendas – o nível a seguir a ser consultora – em sua casa, oferecer-lhe bolachas feitas por ela – uma receita que ainda hoje a empresa replica. Algumas gostavam de tirar fotografias junto à banheira cor-de-rosa da empresária.
“Elas sabem quem eu sou”
O rosa é a cor do sucesso para Mary Kay. Os edifícios da sede da empresa e a fábrica estão pintados dessa cor, assim como os carros que são oferecidos às directoras nacionais. Dolores Araújo, de 57 anos, explica como tudo funciona: quem estiver interessada em ser consultora de beleza deve comprar um kit inicial, conhecer os produtos e “iniciar o negócio”, ou seja, fazer sessões de cuidados de pele. “É o que mais gosto de fazer”, confessa, passados 21 anos de ter entrado no negócio. Estas podem ser feitas em casa da consultora, da potencial cliente ou em sessões com mais pessoas. Por exemplo, Rita Coelho, 24 anos, e que já não vende Mary Kay, fazia as suas sessões num cabeleireiro ou “noutros locais que tenham interesse em ter um evento”.
As clientes não são obrigadas a comprar nada, salvaguarda Dolores. “Uma das coisas que mais me fascina, depois do produto, é o espírito de partilha, eu poder partilhar esta experiência com outras mulheres”, diz, ou seja, as potenciais clientes podem comprar os produtos, mas também podem adquirir o kit e começar o seu próprio negócio. No caso da bracarense, rapidamente se tornou líder de equipa, graças às consultoras que foi angariando para a Mary Kay e, pouco mais tarde, directora de vendas. O passo seguinte é ser directora nacional – Dolores começou com cinco membros na sua equipa e hoje tem 2500, de Norte a Sul do país. “Elas sabem quem eu sou”, assegura.
As directoras “ganham comissões das vendas [da equipa que vão formando] e têm benefícios exclusivos como o carro Mary Kay”, explica Sandra Silva. O carro não se ganha facilmente, é preciso “qualificar-se”, ou seja, fazer um determinado valor em vendas regularmente. Depois disso, quando se chega a directora nacional, ganha-se o estatuto e a entrega do carro é automática. “Desde que sou directora sempre conduzi carros Mary Kay, já vou no quinto e este ano recebo o sexto”, orgulha-se Dolores Araújo.
Há duas décadas, esta directora olhou com admiração para as suas congéneres norte-americanas – viu Mary Kay no palco, mas “já não falava”. Hoje, acredita que no encontro regular que a companhia faz em Portugal, as consultoras olham para si e desejam: “Quero ser como a Dolores.” Mas há outras motivações para continuar a trabalhar, como as jóias e as viagens de luxo, acrescenta a antiga cabeleireira.
Em Portugal existem cerca de 5500 consultoras – “a maioria em part time e podem ganhar 500 euros por mês, outras estão a tempo inteiro e podem fazer nove mil euros”, informa Sandra Silva, que se escusa a avançar com números de vendas ou mesmo quantos clientes têm essas revendedoras. Mas reconhece que, em Portugal, a marca já passou por dificuldades.
No entanto, “nos últimos oito anos duplicamos o tamanho da companhia e o objectivo é voltar a duplicar”, diz, não revelando quaisquer números ou prazos para cumprir essas metas. Aliás, os números internacionais também são desconhecidos com a justificação de que “é uma empresa privada e não está cotada em bolsa”. Nos escritórios portugueses trabalham 15 pessoas, do marketing às vendas, passando pelos armazéns e serviços de apoio às consultoras. A formação destas é da responsabilidade da empresa, mas também das directoras.
Não é possível comprar os produtos online, a aposta é no acompanhamento personalizado. “É importante fazer as pessoas sentirem-se importantes”, refere Dolores Araújo. E quando as consultoras desistem? Rita Coelho conta que quando começou estava no primeiro ano da faculdade, mas passados dois anos desistiu porque não conseguia conciliar os estudos com as sessões de maquilhagem – “dá trabalho, uma sessão pode ser uma hora, mas trabalhamos muito até conseguir organizá-la, ter as pessoas suficientes para a fazer. Sentia muita pressão para fazer um determinado número de vendas; é um negócio instável, por exemplo, os meses de Verão podem ser mais complicados”, revela.
Sandra Silva é peremptória: “Às vezes não está a resultar porque não se está a fazer bem.” Dolores Araújo presume que muitas mulheres podem não estar empenhadas em servir o outro, mas apenas na venda. E "a Mary Kay é mais do que isso".