Bem-vindos ao planeta Kali Uchis
Isolation é o poderoso primeiro álbum da cada vez mais falada cantora e compositora colombiana-americana de 23 anos.
Foi no banco de trás de um Subaru Forester, depois de ter sido expulsa de casa aos 17 anos e com a vida toda dentro daquele carro estacionado algures no Norte do estado da Virgínia, Estados Unidos da América, que Kali Uchis começou a fazer música. Um bloco de notas, um portátil, um microfone foleiro e um teclado foram suficientes para safar a coisa; a angústia e uma voz portentosa fizeram o resto.
Uns anos depois, uma dessas demos foi parar às mãos dos Dap-Kings, banda-realeza do retro-soul. Daí resultou Killer, canção que fecha o primeiro álbum de Kali Uchis, Isolation, num aparato soul com tudo no sítio, menos o coração. E é o coração dela que está a desfazer-se por todo o lado em Isolation, disco em que a fragilidade e a solidão são instrumentos de empoderamento e afirmação. Ouçamos o dramalhão neo-soul luxuriante Flight 22, tragicomédia romântica ao estilo millennial, ou Dead to me, r&b ametista de estamina funk sobre banir da vida tipos tóxicos e obsessivos. Kali Uchis diz o que tem a dizer, exorciza o que tem a exorcizar, e sai por cima. A história não começou muito bem naquele banco de trás de um Subaru Forester, mas hoje, aos 23 anos, Karly-Marina Loaiza, criada entre a América e a Colômbia, está aí em força e a receber a atenção que merece.
Começou a dar nas vistas em 2013 com a mixtape Drunken Babble, elogiada por gente como Snoop Dogg, com quem fez depois a canção On edge. Em 2015 lançou o primeiro EP, Por Vida, Motown meets Tumblr meets West Coast, com ajuda na produção de Diplo, Tyler, The Creator ou Badbadnotgood. Kali Uchis conta com uma carteira variada de colaborações — que inclui também Juanes, Miguel ou Gorillaz —, o que reflecte o seu à-vontade em saltar de género em género e o seu desapego em relação a quaisquer rótulos. Avisava ela no Twitter há uns tempos: “Não esperem de mim um só tipo de música”. Isso é claro em Isolation. Há espaço para neo-soul e doo-wop, funk e r&b, pop e reggaetón, com Uchis a calibrar exemplarmente as diferentes temperaturas do disco na companhia de um forte elenco convidado: Jorja Smith, Damon Albarn, os já citados Dap-Kings, Thundercat, BIA, Kevin Parker (Tame Impala), Tyler, The Creator com o lendário Bootsy Collins (Parliament-Funkadelic) na epidérmica After the storm, entre outros.
Tudo isto contribui para traçar um quadro vivo e alargado do planeta Kali Uchis, tanto musical como pessoal. A cantora e compositora celebra a sua identidade latina em Nuestro planeta, reggaetón honesto e sem truques partilhado com o colombiano Reykon (ficámos com vontade de ouvir Uchis a cantar mais vezes em espanhol), e em Miami (no videoclipe há uma série de referências à cultura lowrider de Los Angeles), pop deslizante de melancolia voluptuosa a fazer lembrar Lana Del Rey, mas em bom, numa breve crónica sobre fazer-se à vida numa cidade que tem tantas palmeiras quanto racismo sistémico. Esse subtexto político volta em Your teeth in my neck, canção de funk pelvicamente sinuoso pró-classe trabalhadora e imigração.
Já In my dreams é talvez um dos momentos menos convincentes do disco, algo entre Au Revoir Simone e Casiotone for the Painfully Alone em versão hi-fi. É em canções como Tyrant, r&b melífluo de recorte dancehall, ou Feel like a fool, poderio soul reminiscente de Amy Winehouse, que Kali Uchis se eleva. Isolation é longo, palpitante, um planeta muito dela onde apetece ficar.